PRESCRIÇÃO E PREPARO DE MEDICAMENTOS SEM FORMULAÇÃO ADEQUADA PARA
CRIANÇAS: UM ESTUDO DE BASE HOSPITALAR
Patrícia Quirino da CostaI; Janete
Eliza Soares de LimaII; Helena Lutéscia Luna CoelhoII
IPrefeitura Municipal de Fortaleza IIDepartamento de Farmácia, Faculdade
de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal do Ceará
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo identificar medicamentos cuja forma
ou formulação farmacêutica representa um problema em pediatria (Medicamento Problema
- MP), bem como analisar as estratégias empregadas pelos médicos, para sua utilização
nas crianças e os riscos envolvidos. Trata-se de um estudo descritivo, que tem como
base um inquérito com pediatras de um hospital de referência do SUS em Fortaleza-Ceará,
conduzido para identificação dos MPs em julho-agosto de 2004; uma análise das prescrições
contendo adaptação de formas sólidas e uma observação direta do preparo dos medicamentos,
que foram conduzidas em dezembro de 2004 e janeiro de 2005, respectivamente.
Os
medicamentos foram agrupados pela classificação ATC e pelo cálculo de frequências
das variáveis. Os pediatras (N=48, 98%) identificaram: 16 produtos sem forma injetável,
32 injetáveis necessários em concentrações menores e 30 MP sem formulação líquida
para uso oral. Foram analisadas 89 prescrições contendo adaptação de formas sólidas,
envolvendo 119 itens de medicamentos; todas continham inadequações, sendo a principal
a partição de comprimidos. As doses prescritas corresponderam ao preconizado em
33,6% dos casos. Adaptações foram realizadas em local inadequado, por profissional
não qualificado e sem as boas práticas. Concluindo, a carência de formulações apropriadas
ao uso pediátrico repercute na prática médica e é agravada pela inexistência de
condições adequadas para a manipulação de medicamentos por farmacêuticos, nos hospitais
brasileiros.
Unitermos: Prescrição pediátrica. Formulações farmacêuticas/adaptações para uso
pediátrico. Medicamentos/uso pediátrico. Farmácia hospitalar.
ABSTRACT
This
work aimed to identify medicines whose form or pharmaceutical formula presents a
problem to pediatrics (Problem Medication - PM), the strategies employed by doctors
to use them in children, and the potential risks involved. Descriptive study: based
on a survey with pediatricians from a SUS (Public Health System) reference hospital
in Fortaleza-CE (Northeastern Brazil), in order to identify PMs, from July to August
2004; an analysis of prescriptions containing modification of medicines in the solid
forms; and a follow-up of medicinal preparations, developed in December 2004 and
January 2005, respectively. The medications were grouped by an anatomic, therapeutic
and chemical classification and by means of a calculation of variables frequency.
The pediatricians (N=48, 98% of the total) identified as PMs: 16 products without
an injectable form; 32 in an injectable form that should be presented in lesser
concentrations; and 30 without a liquid formula for oral use. Eighty two (82) prescriptions
containing modifications of solid forms, involving 111 medicinal items were analyzed,
all of which contained inadequacies; the main one being the partition of pills.
In 33.6% of the cases, the prescribed doses were in accordance with that generally
recommended. The modifications were carried out in inadequate places, by nonqualified
professionals and without the use of best practices. The lack of appropriate formulae
for pediatric use has an impact on medical practices. It is aggravated by the lack
of appropriate conditions for medicines manipulation by pharmacists, in Brazilian
hospitals, and this impact involves risks to patients.
Uniterms: Pediatric
prescription. Pharmaceutical formulations/ adaptations for pediatrics use. Drugs/ pediatrics use. Hospital
pharmacy.
INTRODUÇÃO
As crianças apresentam importantes diferenças e alterações na farmacocinética
e farmacodinâmica de medicamentos, conforme a idade. Tais mudanças devem ser consideradas
no momento da elaboração de esquemas terapêuticos, para que sejam atingidos os efeitos
desejados com menor toxicidade. (Pezzani, 1993; Shirkey, 1999; Soldin, Soldin, 2002).
A escassez de medicamentos desenvolvidos para uso em crianças obriga,
frequentemente, os prescritores à extrapolação de informações obtidas através de
testes em adultos, bem como à adaptação de formulações inadequadas para essa faixa
etária (Kauffman, 1998; Christensen, Helms, Chesney, 1999; Gravilov et al., 2000; Cuzzolin, Zaccaron, Fanos,
2003). Consensos de especialistas, estudos observacionais, assim como o uso de preparações
magistrais, são estratégias que têm sido empregadas para lidar com essas limitações.
(Avenel et al., 2000, Santos, Coelho,
2004, Stepheson, 2006). A carência de evidências seguras e de formulações padronizadas
afeta, principalmente, crianças hospitalizadas, particularmente aquelas em unidades
de tratamento intensivo, colocando em risco a eficácia e a segurança dos tratamentos.
(Conroy, Mcintire, Choonara, 1999; Avenel et
al., 2000; Conroy et al., 2000,
Carvalho et al., 2003; Santos, Coelho,
2006; Pandolfini, Bonati, 2005).
No Brasil, alguns estudos evidenciam a relevância do problema, particularmente
no contexto hospitalar, onde o uso de medicamentos não licenciados ou não padronizados
para crianças, é uma realidade. (Carvalho et
al., 2003; Meiners, Bergsten-Mendes, 2001; Peterlinehaud, Pedreira, 2003; Santos,
Coelho, 2008).
Algumas iniciativas importantes vêm sendo desenvolvidas nos Estados
Unidos, Europa e
Austrália para aumentar a disponibilidade de medicamentos desenvolvidos
para crianças, porém seu impacto na prática clinica ainda é muito limitado. (Powell,
2000; Steinbrook, 2002; Lavanderia, 2002).
No que se refere à carência de formulações apropriadas para uso pediátrico,
a prescrição de adaptações de forma ou formulação específica para adultos ou para
crianças de outro subgrupo etário, traz riscos de inexatidão da dose, contaminação
durante a manipulação, perda de estabilidade, incompatibilidades e interações. (Nahata,
1999; 'T Jong, 2003). A existência de formas farmacêuticas apropriadas facilita
a administração e o cumprimento dos tratamentos e evita perdas desnecessárias, reduzindo
os custos em saúde.
Uma formulação ideal teria facilidade de preparo pelo farmacêutico
e de administração pela enfermeira, concentração e volume suficientes para obtenção
da medida ou da dosagem necessária, sabor agradável e dados científicos que respaldassem
o preparo e a determinação do prazo de validade. Preparações líquidas são as mais
adequadas para uso em crianças, devido à facilidade de ajuste das doses e das características
organolépticas, bem como pela facilidade na deglutição e administração. (Pezzani,
1993; 'T Jong, 2003)
Entretanto, essa não é a realidade da pediatria, dada a carência de
formas líquidas, o que se verifica, mais frequentemente, é a adaptação de formas
farmacêuticas sólidas para líquidas e a prescrição de formulações magistrais. (Pezzani,
1993).
Nahata (1999) considerou que a alternativa mais indicada para esse
caso seria a preparação de formulações extemporâneas, com o uso de excipientes apropriados.
No entanto, é difícil assegurar a estabilidade de medicamentos extemporâneos, pela
ausência de testes para comprovar sua qualidade, segurança e eficácia (Lavanderia,
2002).
Em amplo estudo realizado na França por Fontan et al. (2000), no qual farmacêuticos
de 53 hospitais responderam a um questionário sobre o preparo de medicamentos em
suas instituições, foi verificado que no ano 1997, foram preparados a partir de
princípios ativos um total de 1.155.544 medicamentos para administração em crianças,
sendo 968.552 cápsulas e 33.493 formas orais líquidas. Os medicamentos mais frequentes
foram: captopril, fludrocortisona, ranitidina, espironolactona e ácido ursodesoxicólico.
Na maioria dos hospitais brasileiros, não existem condições para que
o preparo de medicamentos seja feito da maneira adequada. De acordo com as normas
nacionais (RDC 214/2006), o preparo de medicamentos em hospitais é de responsabilidade
exclusiva do farmacêutico, devendo ser realizado em local apropriado, atendendo
às exigências das boas práticas de manipulação (Brasil, 2006). No entanto, conforme
Osório e Castilho (2004), apenas 7,2% (12 de 163) das farmácias hospitalares realizam
fracionamento de medicamentos e destas, somente 43% atendem, minimamente, às exigências
da legislação. O modo como essas deficiências afetam o uso de medicamentos em crianças
hospitalizadas no país é pouco conhecido, sendo este, então, o objeto de estudo
do presente trabalho.
MÉTODOS
A investigação foi realizada em hospital pediátrico de referência do
SUS, em Fortaleza, Brasil, instituição com 235 leitos, taxa média de ocupação de
111,7% e taxa média de permanência de 13,91 dias de internação. O hospital apresenta
11 enfermarias, divididas em 21 especialidades, incluindo: clínica geral, clínica
cirúrgica, prematuros, infectados, neurocontaminados, otorrino e plástica, cirurgia
geral, crianças de 0 a 3 meses, urologia, ortopedia clínica, pacientes infectados,
enfermaria geral, calazar, pneumologia, neurocirurgia, neurologia, gastroenterologia,
nefrologia, emergência, neonatal e suporte nutricional e prematuro, além da Unidade
de Tratamento Intensivo. A instituição conta com 49 pediatras e, vinculados à farmácia
hospitalar, 15 farmacêuticos e 7 auxiliares.
O trabalho foi realizado em duas etapas. A primeira relacionada à aplicação
dos questionários, no período de julho e agosto de 2004, e a segunda, à análise
de prescrições e à observação do preparo dos medicamentos, em dezembro de 2004 e
janeiro de 2005.
Trata-se de um estudo descritivo, baseado em inquérito com pediatras
da instituição hospitalar, seguido da análise de prescrições contendo adaptação
de sólidos para líquidos e do seguimento do preparo desses medicamentos.
No questionário, aplicado a todos os médicos da instituição que concordaram
em participar do estudo, as perguntas que se referiam aos medicamentos foram abertas,
sendo abordados problemas relativos à carência de formulações e de formas farmacêuticas
padronizadas para uso pediátrico. A definição das questões abordadas foi precedida
por uma sondagem piloto para identificação dos problemas considerados mais importantes.
O questionário da pesquisa foi preenchido pelo próprio clínico no seu local de trabalho,
após a assinatura do termo de consentimento, conforme aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Instituição.
Na etapa seguinte do estudo, foram analisadas de duas a treze prescrições
por medicamento adaptado da forma sólida para a líquida, originadas em todas as
enfermarias, incluindo CTI e UTI. Das prescrições, foram coletados dados sobre idade
da criança, peso, identificação e número de medicamentos adaptados (MA) prescritos,
dose e procedimentos de preparo indicados. Um total de 89 pacientes teve suas prescrições
analisadas, incluindo 43 meninos e 46 meninas, com idade média de 246 dias, variando
de 2 meses a 13 anos e peso médio de 5,53 kg, variando de 4,18 a 55 kg.
A identificação e a coleta de dados das prescrições que envolviam adaptação
de comprimidos para a forma líquida foram realizadas pelo pesquisador antes da dispensação
na farmácia hospitalar. Conforme a prática normal do serviço, os medicamentos eram
dispensados em comprimidos na farmácia hospitalar e distribuídos aos postos de enfermagem,
onde o preparo era realizado pelas auxiliares de enfermagem.
As sessões de observação foram realizadas em todos os turnos do hospital
e nas diversas enfermarias, incluindo a unidade de tratamento intensivo. Todas as
sessões foram realizadas de modo discreto e silencioso, pelo mesmo pesquisador e
sem sua interferência, tendo sido registrados em um formulário, os seguintes aspectos:
técnica de preparo (fracionamento, trituração, dissolução e solubilização), tipo
de recipiente utilizado para a realização dessas operações e atendimento às boas
práticas de manipulação.
A partir do questionamento realizado, foi composta uma lista de medicamentos-
problema referidos pelos médicos em pediatria e foi realizada a análise da frequência
de grupos e subgrupos terapêuticos, expressa em percentuais com o auxílio do software
Epi Info 6.04, 2002. Para os medicamentos, empregou-se a Classificação Anatômica,
Química e Terapêutica (Anatomical-Therapeutical-Chemical Classification Index -
ATC) (WHO, 2004).
Foi calculada a dose atribuída a cada paciente conforme a adaptação
orientada na prescrição e esta foi comparada à dose preconizada na literatura, considerando-se
idade e peso da criança (Taketomo, Hodding, Kraus 2001/2002; Pharmacist's Drug,
2001; Brasil, 2002). Os procedimentos de preparo dos medicamentos também foram comparados
àqueles normatizados pela resolução N° 33, de 19 de abril de 2000, que estabelece
as boas práticas de manipulação, a serem realizadas em área específica da farmácia
hospitalar, destinada à manipulação de medicamentos, por um farmacêutico responsável
ou sob sua supervisão imediata e seguindo procedimentos operacionais padronizados
(Brasil, 2001). A verificação da ocorrência das preparações farmacêuticas no mercado
brasileiro foi feita através de pesquisa no Dicionário de Especialidades Farmacêuticas
(2005/06/07), no Formulário Terapêutico do Núcleo de Assistência Farmacêutica da
Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Brasil, 2002) e no Bulário da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Brasil, 2005). As informações sobre presença em outros
mercados foram colhidas no Pediatric Dosage Handbook (2002).
RESULTADOS
Do quadro de médicos do hospital (N=49), apenas um recusou-se a preencher
o questionário e 33 (68,75%) responderam a todas as perguntas formuladas. Na sondagem-piloto,
os problemas mais citados pelos entrevistados como pertinentes à carência de formulações
padronizadas para crianças foram: ausência de formulações líquidas, inexistência
de injetáveis necessários, injetáveis com concentrações elevadas e presença de aditivos
capazes de desencadear alergias a partir da composição de alguns medicamentos.
Na Tabela I são apresentados os medicamentos referidos pelos
médicos como inexistentes na forma líquida para uso oral no mercado brasileiro,
embora necessários, sendo os mais frequentes: captopril (41,67%), furosemida (29,17%),
digoxina (14,58%), espironolactona (10,42%) e hidroclorotiazida (8,33%). Vale esclarecer
que a digoxina em apresentação oral não está padronizada no hospital, mas o elixir
pediátrico é comercializado no Brasil.
Os grupos terapêuticos mais envolvidos, conforme a classificação ATC,
foram: diuréticos (52,08%), agentes que atuam sobre o sistema renina-angiotensina
(41,67%), tratamentos de doenças cardíacas (14,58%), corticosteróides para uso sistêmico
(14,58%) e antibacterianos de uso sistêmico (10,42%); já os subgrupos terapêuticos
predominantes foram: inibidores da enzima de conversão do sistema renina-angiotensina
isolados (41,67%), diuréticos de alça ascendente (29,17%), glicosídeos cardíacos
(14,58%), corticosteroides para uso sistêmico isolados (14,58%), agentes poupadores
de potássio (10,42%) e diuréticos de alça descendente (10,42%).
Foram referidos pelos médicos, os nomes de 16 medicamentos que não
existiriam no Brasil na forma injetável, embora fossem considerados necessários,
sendo os mais frequentemente citados: paracetamol (39,58%), espironolactona (12,5%),
amoxicilina (12,5%), captopril (8,33%), e digoxina (4,17%), protamina (2,08%), lorazepam
(2,08%), diclofenaco (2,08%). Aplicando-se a classificação ATC, os grupos terapêuticos
mais envolvidos foram: analgésicos (39,58%), diuréticos (18,75%), antimicrobianos
de uso sistêmico (16,67%) e antimicobacterianos (10,42%); já os subgrupos terapêuticos
foram: outros analgésicos e antipiréticos (39,58%), agentes poupadores de potássio
(12,5%), penicilinas - antibacterianos β-lactâmicos
(12,5%) e medicamentos para o tratamento da tuberculose (10,42%). Os fármacos mais
frequentemente citados foram: paracetamol (39,58%), espironolactona (12,5%), amoxicilina
(12,5%), captopril (8,33%), hidroclorotiazida (6,25%), digoxina, rifampicina, isoniazida
e carbamazepina (4,17% cada).
Foram referidos pelos médicos (N=48) 32 medicamentos de uso injetável
que, segundo eles, deveriam existir em menores concentrações, sendo os mais frequentes:
anfotericina B (16,57%), vancomicina (14,58%), fenitoína (12,50%), dipirona, fenobarbital
e ranitidina (10,42%), penicilina cristalina e amicacina (8,33%).
No Quadro
I, estão listados todos os medicamentos adaptados da forma sólida para líquida,
cujo preparo foi acompanhado nos postos de enfermagem, sendo os mais prescritos:
espironolactona (15,13%), ácido fólico (10,08%), captopril (9,24%), carbamazepina
(7,56%) e furosemida (7,56%).
De acordo com a Tabela
II, os medicamentos mais prescritos em subdoses foram: espironolactona, captopril
e furosemida; enquanto que os medicamentos mais prescritos em sobredoses foram:
ácido fólico, carbamazepina, captopril, carbonato de cálcio e digoxina. O cálculo
das doses prescritas, considerando-se o fracionamento e a dissolução recomendados,
evidenciou que em apenas 33,6% dos casos (40 de 119 medicamentos) a dosagem final
correspondia ao preconizado na literatura. Em 77 casos as dosagens não corresponderam
ao recomendado, sendo 22,7 % subdoses e 39,5 % sobredoses; em 5 casos não foram
encontradas doses pediátricas. A maioria das sobredoses ocorreu entre os lactantes,
afetando 49 crianças do grupo (55% do total de pacientes envolvidos na observação).
Em 90 casos (75,63% das 119 adaptações), o veículo indicado na prescrição
era inadequado. O restante das soluções preparadas com os comprimidos triturados
era descartado após o uso, com exceção do captopril e espironolactona, cuja solução
aquosa era acondicionada em frasco comum e armazenada em geladeira ou à temperatura
ambiente, sem rotulagem adequada, para novo uso. De acordo com a literatura, a espironolactona
deve ser armazenada em vidro âmbar, e o captopril é instável em solução aquosa.
(Pharmacist's, 2001).
O preparo dos medicamentos nos postos de enfermagem do hospital era
realizado em local aberto, sem restrição quanto às pessoas que ali circulavam, com
uma pia utilizada para lavagem de mãos e utensílios; a geladeira existente não era
de uso exclusivo para a guarda de medicamentos; o preparo dos medicamentos era realizado,
por auxiliar de enfermagem, sem a supervisão do farmacêutico, em cima de uma bancada
de uso comum e sem a utilização de equipamentos de proteção individual (máscara,
gorro, bata e luvas). Os problemas observados durante o fracionamento e o preparo
das adaptações prescritas para os MP são apresentados na Tabela III.
DISCUSSÃO
A receptividade a essa investigação por parte dos médicos da instituição
pesquisada, com apenas uma recusa em responder ao questionário, sugere a compreensão
da relevância do problema e da necessidade de intervenções que possam dar maior
segurança à prática clínica em pediatria, no que se refere ao uso de medicamentos.
A carência de formulações de uso oral, a falta de injetáveis ou de
injetáveis com dosagem adequada, a presença na composição de produtos farmacêuticos
de aditivos capazes de causar eventos adversos em pacientes, as dificuldades na
obtenção de informações sobre dosagens de uso pediátrico foram os problemas mais
citados pelos entrevistados na sondagem realizada.
A inexistência de formulações líquidas para uso oral de vários medicamentos
foi o problema mais citado nas entrevistas; contudo, 5 dos medicamentos referidos
como inexistentes nessa forma farmacêutica já são comercializados no Brasil, mas
não eram disponibilizados no hospital à época da pesquisa (ácido valpróico, carbamazepina,
cloreto de potássio, digoxina e nitrofurantoína (Tabela I); e dois
(cloreto de potássio e nitrofurantoína) estavam disponíveis na instituição pesquisada,
mas essa disponibilidade não era conhecida pelos prescritores.
Outros medicamentos,
como ácido ursodesoxicólico, biclofibrato, fludrocortisona, penicilina procaína
e omeprazol foram citados como necessários na forma líquida, embora sejam medicamentos
não licenciados para uso em crianças, mesmo em outros países (Pharmacist's, 2001).
No caso das penicilinas, também citadas, existe no mercado brasileiro amoxicilina
suspensão oral e fenoximetilpenicilina (penicilina V) em frasco com suspensão oral,
como alternativas terapêuticas. Benzilpenicilina procaína não ocorre na forma líquida
e não parece haver possibilidade técnica do uso oral desse medicamento; o produto
é formulado para prover absorção lenta exclusiva por via intramuscular (IM).
O medicamento mais citado pelos médicos, como necessário e não disponível
na forma líquida para uso oral, foi o captopril. Tanto no Brasil, como em outros
países, o captopril encontra-se disponível apenas na forma farmacêutica de comprimidos,
devido a aspectos químicos que dificultam a sua estabilidade em solução. (Pharmacist's,
2001).
Já o fármaco mais referido como não disponível no Brasil na forma injetável,
embora seja considerado necessário, foi o paracetamol (frequência = 19; 39,58%).
A necessidade de antitérmicos injetáveis, manifesta pelos pediatras, pode ser verificada
em outros dois estudos realizados na mesma instituição, na qual se verificou uma
elevada prevalência de uso da dipirona injetável, visto ser este o único antitérmico
disponível nessa forma farmacêutica no Brasil. (Gondim, 2003; Santos et al., 2008).
Medicamentos já comercializados no Brasil na forma injetável e também
disponíveis no hospital, como diclofenaco e digoxina, foram citados por alguns entrevistados
como não existentes nessa forma farmacêutica. Também foram citados como inexistentes
e necessários na forma injetável, protamina e lorazepam, que são medicamentos não
licenciados para uso em crianças no Brasil, nem nos Estados Unidos nem em outros
países (Pharmacist's, 2001). Lorazepam injetável não é comercializado no Brasil,
mesmo para adultos, enquanto protamina injetável, sim.
O grupo terapêutico dos diuréticos foi o segundo em ordem de frequência
de necessidade da forma injetável e o primeiro em termos da forma líquida para uso
oral. Nesse grupo, os medicamentos mais frequentes foram espironolactona, hidroclorotiazida,
e furosemida, este último apenas na forma oral. A furosemida foi o fármaco mais
citado como não disponível na formulação líquida oral para criança. Em verdade,
a solução oral de 10 mg/mL tem registro na ANVISA, mas não é comercializada atualmente
e nem faz parte da
Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Brasil, 2002).
Em
outros mercados, existem formulações líquidas de furosemida em baixas concentrações,
facilitando a administração em neonatos e crianças pequenas (Brasil, 2002). Por
sua vez, a espironolactona é comercializada no Brasil, com indicação pediátrica,
na forma de comprimidos e comprimidos revestidos. Na maioria dos países, esse medicamento
é manipulado como preparação extemporânea; porém, já existe em alguns mercados a
suspensão oral em várias concentrações, favorecendo o tratamento de prematuros e
neonatos (Brasil, 2002). Já a hidroclorotiazida, registrada no Brasil para adultos
e crianças, só existe em nosso mercado na forma de comprimido; enquanto em outros
países, é ofertada também como solução oral de uso pediátrico.
Dentre os medicamentos utilizados no tratamento sintomático de insuficiência
cardíaca congestiva, a digoxina foi o mais referido pelos pediatras como não disponível
na forma líquida; entretanto, no Brasil, são comercializados o elixir e a solução
oral para crianças, com concentrações semelhantes às existentes em outros países,
além de estar disponível na apresentação de gotas na RENAME.
A prednisona, no Brasil, só é encontrada para uso pediátrico na forma
de comprimidos e comprimidos revestidos; enquanto no exterior (Brasil, 2002), é
comercializada também em forma de xarope ou de solução de uso oral com concentrações
variadas. Isso seria menos problemático, se a alternativa terapêutica e pró-fármaco
prednisolona, comercializada em nosso país em formulação líquida, constasse na RENAME.
Atualmente, esta inclui apenas a prednisona em comprimidos de 5 e 20 mg. (Brasil,
2002).
Tais resultados revelam a carência de informações dos entrevistados
sobre a disponibilidade de medicamentos na instituição, no SUS e no mercado brasileiro,
sendo necessário investigar que fatores dificultam o acesso a essas informações,
já que são quase sempre de domínio público. De qualquer modo, iniciativas simples
por parte inclusive dos farmacêuticos hospitalares podem e devem ser tomadas, no
sentido de facilitar a atualização dos médicos a esse respeito. Diversos trabalhos
têm evidenciado as limitações de conhecimento dos prescritores no que se refere
a medicamentos, e apontado dentre os fatores responsáveis por essas limitações,
deficiências no ensino da farmacologia clínica e da terapêutica nas escolas médicas
('T Jong, 2003). É evidente, também, a sobrecarga de trabalho desses profissionais,
bem como o desinteresse pelos aspectos farmacêuticos dos tratamentos, além de uma
atitude pouco crítica relacionada às informações veiculadas pelos laboratórios farmacêuticos
(Steinbrook, 2002).
A partir da premente necessidade de formulações farmacêuticas adequadas,
é importante ressaltar que não se justifica a inexplicável disparidade existente
entre a oferta de produtos, no Brasil e em outros países, no que se refere às formulações
pediátricas, evidenciando a necessidade de ações positivas a esse respeito. A inclusão
de tais formulações na RENAME poderia ser uma estratégia para motivar o interesse
dos laboratórios farmacêuticos, uma vez que isso representaria uma garantia de mercado
substancial. Caberia ao Ministério da Saúde, em conjunto com a ANVISA, estabelecer
uma política específica de incentivo ao desenvolvimento de medicamentos para crianças,
bem como fomentar a pesquisa clínica em pediatria, tal como vem ocorrendo nos Estados
Unidos, Europa e Austrália (Steinbrook, 2002).
Como referido anteriormente, dentre os problemas mais citados na sondagem
inicial realizada com os pediatras, destacou-se a dificuldade em obter informações
sobre dosagem para crianças. Esse problema foi evidenciado, na prática, pela análise
das doses prescritas e pela comparação com a literatura, tendo por base o registro
da idade e do peso no prontuário da criança registrados no prontuário. Os resultados
mostraram que apenas 33,6% das crianças receberam doses em conformidade com o preconizado
na literatura científica, 39,5% receberam sobredoses e 22,7% subdoses.
Dentre os
medicamentos prescritos em sobredoses, digoxina e carbamazepina são substâncias
de baixo índice terapêutico, representando um grave risco de intoxicação seu emprego
em doses elevadas. A ocorrência de subdoses no tratamento de crianças hospitalizadas
também é extremamente preocupante, tendo em vista o risco de agravamento do quadro
clínico. Conforme Kaushall et al.
(2008), erros de medicação são comuns em pacientes pediátricos hospitalizados e
dentre estes, os erros de dosagem são os mais frequentes, correspondendo a cerca
de 28 % do total de erros. Os mesmos autores referem também que a taxa de Eventos
Adversos Potenciais é maior para os erros de dosagem, em relação aos outros tipos
de erro (48% dos eventos adversos potenciais), sendo mais elevada em neonatos.
Para o referido subgrupo pediátrico, a carência de evidências seguras
e de formulações adequadas é maior ainda, justificando a extrapolação de informações
e a adaptação de preparações farmacêuticas (Bonati, 1994; Rodriguez, Roberts, Murphy
2001). Com relação a esse aspecto, em um estudo prospectivo realizado na mesma instituição
hospitalar que a presente investigação (Santos, Coelho 2006), verificou-se uma incidência
cumulativa de Reação Adversa a Medicamento maior entre os pacientes que receberam
medicamentos com dose/frequênciaoff label, isto é, distintos do descrito
na bula (I 12,5%; Risco relativo 1.36; 95% CI 1.05, 1.77).
Outros estudos também
apontam a associação positiva entre uso off
label e eventos adversos em pediatria
(33,35), o que reforça a necessidade de mais ensaios clínicos na população pediátrica
e esforços a fim de garantir que as prescrições para crianças sejam baseadas em
evidências documentadas de segurança e eficácia (Santos, Coelho, 2006). Estudos
que avaliam intervenções voltadas para a prevenção de Erros de Medicação no contexto
hospitalar têm evidenciado a importância da participação do farmacêutico, particularmente
daqueles com formação clínica, na redução dos erros (Fortescue et al., 2003). Cabe ao farmacêutico, avaliar a prescrição
antes do preparo e fazer as devidas correções, além de informar aos médicos sobre
os problemas encontrados e a maneira de evitá-los (Koren, Haslam, 1994). No Brasil
é atribuição inerente ao farmacêutico, avaliar a prescrição quanto à concentração
e compatibilidade físico-química dos componentes, dose e via de administração, forma
farmacêutica e o grau de risco (Brasil, 2007).
É possível que eventos adversos associados aos erros observados no
presente trabalho estejam sendo detectados pelo programa de farmacovigilância do
hospital e encaminhados à ANVISA, visto tratar-se de um hospital sentinela. Dentro
dos objetivos de tal programa, encontra-se a promoção do uso adequado de medicamentos,
o que é fundamental para que esses riscos sejam minimizados. O fato das prescrições
conterem o modo de preparo, ao invés da dosagem do medicamento, sugere a inexistência
de práticas adequadas de manipulação de formulações extemporâneas no hospital, atividade
indispensável em instituição dessa natureza.
Tal realidade é comum no Brasil, onde
a maior parte das farmácias hospitalares não conta com infra-estrutura para manipulação
de medicamentos (Osório de Castro, Castilho, 2004). A ocorrência da manipulação
fora do ambiente da farmácia, por profissional não habilitado e sem supervisão do
farmacêutico, pode levar a erros na dosagem final administrada e a contaminações
de diversas ordens (Pezzani Valenzuela, 1993). Em que pese às dificuldades existentes,
cabe ao profissional farmacêutico, dentro das instituições onde trabalha, zelar
pelo uso adequado de medicamentos em toda a sua extensão, atuando com competência
técnica, como parte da equipe de saúde e reivindicando junto ao gestores, condições
adequadas de trabalho.
CONCLUSÃO
A carência de medicamentos adequados para uso em crianças, no Brasil,
envolve ampla gama de produtos de grande utilidade clínica e constitui um problema
de saúde pública. Vários dos produtos necessários já são comercializados em outros
países, o que evidencia a urgência de políticas específicas para o setor. Aos problemas
comuns a outros países, somam-se deficiências na formação e informação dos pediatras
em aspectos essenciais ao uso seguro de medicamentos, carências estruturais das
farmácias hospitalares e atuação insatisfatória dos farmacêuticos. Tal realidade
expõe os pacientes pediátricos a riscos inaceitáveis, passíveis de prevenção. Constata-se
a necessidade de uma ação concentrada de diversas instituições e órgãos públicos,
bem como de profissionais que lidam com a saúde da população infantil no país, para
assegurar às crianças um patamar de segurança no uso de medicamentos, no mínimo,
equivalente ao já alcançado para a população adulta.
AGRADECIMENTOS
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(FUNCAP) pela bolsa de Mestrado concedida a Patrícia Quirino da Costa.
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Correspondência: H. L. L. Coelho Departamento
de Farmácia Faculdade de Farmácia, Odontologia
e Enfermagem Universidade Federal do Ceará Rua Capitão Francisco Pedro, nº 1210, Rodolfo
Teófilo - 60431-327 Fortaleza - CE, Brasil E-mail: helenalutescia@yahoo.com.br
Recebido para publicação em 15 de maio de 2007. Aceito para publicação em 10 de novembro de
2008.
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