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A SAÚDE DO TRABALHADOR
I - Introdução
Ao longo das duas últimas décadas, acompanhando o processo de
democratização do País, vem tomando corpo uma série de práticas no âmbito da
Saúde Pública, bem como em determinados setores sindicais e acadêmicos, que configuram
o campo que passou a denominar-se Saúde do Trabalhador. Alguns estudos
recuperam parte desse percurso (Dias, 1994; Lacaz, 1994), sistematizam
experiências inovadoras (Costa et al., 1989; Pimenta & Capistrano, 1988) ou
apontam as diferenças conceituais e teórico-metodológicas que o distinguem da
Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional (Tambellini, 1986; Mendes &
Dias, 1991).
No entanto, cada vez mais, têm surgido temas, estudos, abordagens
que, embora afetos à relação trabalho-saúde, apenas correspondem parcialmente
ao que se entende por Saúde do Trabalhador. É uma área passível de abrigar
diferentes aproximações e de incluir uma variedade de estudos e práticas de
indiscutível valor, mesmo na ausência de uma adequada precisão conceitual sobre
o caráter da associação entre o trabalho e o processo saúde-doença. Pode-se
dizer que existe uma "zona de empatia", para a qual confluem diversos
estudos disciplinares. Essas contribuições esclarecem determinadas questões de
interesse, como alguns riscos ocupacionais em locais de trabalho ou em setores
de uma categoria profissional, sem pretender dar resposta ao campo como tal.
Trata-se de uma ampla produção que evitamos particularizar, mas se estende
pelos Departamentos de Medicina Preventiva/Social, por Instituições de Saúde
Pública/Saúde Coletiva e outras Faculdades de diversas áreas de conhecimento.
Torna-se desejável, entretanto, delimitar o arcabouço específico,
um núcleo epistemológico que, sem rigidez, defina os conceitos fundamentais da
área, tanto do ponto de vista teórico, como nas suas implicações para o
desenvolvimento de estudos/pesquisas e o direcionamento da prática, à luz do
processo econômico, social e político do País. Demarcar diferenças não
significa desconhecer ou desmerecer a importância dos investimentos realizados
para enfrentar situações ou analisar questões específicas da relação
trabalho-saúde. Clarificar, porém, a dimensão processual da construção do campo
pode "interfertilizar" toda essa "zona de empatia".
2 - O trabalho e a saúde
A relação entre o trabalho e a saúde/doença - constatada desde a
Antigüidade e exacerbada a partir da Revolução Industrial - nem sempre se
constituiu em foco de atenção. Afinal, no trabalho escravo ou no regime servil,
inexistia a preocupação em preservar a saúde dos que eram submetidos ao
trabalho, interpretado como castigo ou estigma: o "tripalium",
instrumento de tortura. O trabalhador, o escravo, o servo eram peças de
engrenagens "naturais", pertences da terra, assemelhados a animais e
ferramentas, sem história, sem progresso, sem perspectivas, sem esperança
terrestre, até que, consumidos seus corpos, pudessem voar livres pelos ares ou
pelos céus da metafísica (Nosela, 1989).
Com o advento da Revolução Industrial, o trabalhador
"livre" para vender sua força de trabalho tornou-se presa da máquina,
de seus ritmos, dos ditames da produção que atendiam à necessidade de
acumulação rápida de capital e de máximo aproveitamento dos equipamentos, antes
de se tornarem obsoletos.
As jornadas extenuantes, em ambientes extremamente desfavoráveis à
saúde, às quais se submetiam também mulheres e crianças, eram freqüentemente
incompatíveis com a vida. A aglomeração humana em espaços inadequados
propiciava a acelerada proliferação de doenças infecto-contagiosas, ao mesmo
tempo em que a periculosidade das máquinas era responsável por mutilações e
mortes.
As propostas controvertidas de intervir nas empresas, àquela
época, expressaram-se numa sucessão de normatizações e legislações, que tem no
Factory Act, de 1833, seu ponto mais relevante, passando a tomar corpo, na
Inglaterra, a medicina de fábrica.
A presença de um médico no interior das unidades fabris
representava, ao mesmo tempo, um esforço em detectar os processos danosos à
saúde e uma espécie de braço do empresário para recuperação do trabalhador,
visando ao seu retorno à linha de produção, num momento em que a força de
trabalho era fundamental à industrialização emergente. Instaurava-se assim o
que seria uma das características da Medicina do Trabalho, mantida, até hoje,
onde predomina na forma tradicional: sob uma visão eminentemente biológica e
individual, no espaço restrito da fábrica, numa relação unívoca e unicausal,
buscam-se as causas das doenças e acidentes.
Através dos tempos, a atuação do Estado no espaço do trabalho
sustentou-se nas concepções dominantes sobre a causalidade das doenças. Essas
concepções decorrem tanto da bagagem cumulativa de conhecimentos, como do seu
caráter de práticas sociais, cujos marcos conceituais definem-se no bojo de relações
peculiares aos diferentes contextos históricos onde surgem ou se mantêm.
Assim, a Medicina do Trabalho, centrada na figura do médico,
orienta-se pela teoria da unicausalidade, ou seja, para cada doença, um agente
etiológico. Transplantada para o âmbito do trabalho, vai refletir-se na
propensão a isolar riscos específicos e, dessa forma, atuar sobre suas
conseqüências, medicalizando em função de sintomas e sinais ou, quando muito,
associando-os a uma doença legalmente reconhecida.
Como freqüentemente as doenças originadas no trabalho são
percebidas em estágios avançados, até porque muitas delas, em suas fases
iniciais, apresentam sintomas comuns a outras patologias, torna-se difícil, sob
essa ótica, identificar os processos que as geraram, bem mais amplos que a mera
exposição a um agente exclusivo. A rotatividade da mão-de-obra, sobretudo
quando se intensifica a terceirização, representa um obstáculo a mais nesse
sentido. A passagem por processos produtivos diversos pode mascarar nexos
causais e diluir a possibilidade de estabelecê-los, excetuando-se os mais
evidentes e considerada a hipótese remota de exames admissionais que levem em
conta a história laboral pregressa, numa perspectiva ainda mais remota de
alimentar um processo de vigilância em saúde do trabalhador. A constatação de
doenças na seleção da força de trabalho funciona, na prática, como um recurso
para impedir o recrutamento de indivíduos cuja saúde já esteja comprometida.
A Saúde Ocupacional avança numa proposta interdisciplinar, com
base na Higiene Industrial, relacionando ambiente de trabalho-corpo do
trabalhador. Incorpora a teoria da multicausalidade, na qual um conjunto de
fatores de risco é considerado na produção da doença, avaliada através da
clínica médica e de indicadores ambientais e biológicos de exposição e efeito.
Os fundamentos teóricos de Leavell & Clark (1976), a partir do modelo da
História Natural da Doença, entendem-na, em indivíduos ou grupos, como derivada
da interação constante entre o agente, o hospedeiro e o ambiente, significando
um aprimoramento da multicausalidade simples.
Mesmo assim, se os agentes/riscos são assumidos como
peculiaridades "naturalizadas" de objetos e meios de trabalho,
descontextualizados das razões que se situam em sua origem, repetem-se, na
prática, as limitações da Medicina do Trabalho. As medidas que deveriam
assegurar a saúde do trabalhador, em seu sentido mais amplo, acabam por
restringir-se a intervenções pontuais sobre os riscos mais evidentes.
Enfatiza-se a utilização de equipamentos de proteção individual, em detrimento
dos que poderiam significar a proteção coletiva; normatizam-se formas de
trabalhar consideradas seguras, o que, em determinadas circunstâncias, conforma
apenas um quadro de prevenção simbólica. Assumida essa perspectiva, são
imputados aos trabalhadores os ônus por acidentes e doenças, concebidos como
decorrentes da ignorância e da negligência, caracterizando uma dupla
penalização (Machado & Minayo-Gomez, 1995).
Em síntese, apesar dos avanços significativos no campo conceitual
que apontam um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação
trabalho-saúde, consubstanciados sob a denominação de Saúde do Trabalhador,
depara-se, no cotidiano, com a hegemonia da Medicina do Trabalho e da Saúde
Ocupacional. Tal fato coloca em questão a já identificada distância entre a
produção do conhecimento e sua aplicação, sobretudo num campo potencialmente
ameaçador, onde a busca de soluções quase sempre se confronta com interesses
econômicos arraigados e imediatistas, que não contemplam os investimentos
indispensáveis à garantia da dignidade e da vida no trabalho.
No Brasil, esta situação se agrava pela incapacidade do setor
saúde do Estado em reabsorver seu papel de intervir no espaço do trabalho. Esta
tarefa, prevista na Reforma Carlos Chagas, de 1920 - interrompida com a
criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que passou a
assumi-la - foi resgatada na Carta Constitucional de 1988 e regulamentada pela
Lei 8080. No entanto, as marcas de um passado recente não são facilmente
removíveis.
As Delegacias Regionais do Trabalho advogam, em vários estados, a
exclusividade de sua competência para inspecionar os centros produtivos. Essa
posição, de um modo geral, encontra eco nos segmentos mais conservadores do
patronato, na medida em que tais inspeções, orientadas por um modelo
tradicional, pontuais e técnico-burocratas, incapazes de alimentar um sistema
de vigilância em saúde do trabalhador, servem aos seus propósitos ao não
promoverem mudanças significativas.
Da mesma forma, os Serviços Especializados em Segurança e Medicina
do Trabalho - SESMT -, instituídos em 1978, com algumas exceções, desviam-se da
função de reconhecer, avaliar e controlar as causas de acidentes e doenças.
Seus profissionais - assalariados pela empresa e sem respaldo legal para
contrariarem-lhe os interesses - restringem-se à adoção de medidas paliativas
diante dos riscos mais patentes.
A deficiência na formação de recursos humanos na área,
conseqüência da marginalidade ainda atribuída à questão trabalho-saúde, aliada
à generalizada insatisfação profissional, reproduz na rede pública a prática
ineficaz dos SESMT, presente também em serviços conveniados com as empresas e
com o próprio sistema público de saúde.
Essa desintegração, expressa em ações fragmentadas, desarticuladas
e superpostas de instituições com responsabilidade direta ou indireta na área -
agravada por conflitos de concepções e práticas, bem como de interpretação
sobre competências jurídico-institucionais -, revela a trajetória caótica do
Estado em sua função de promover a saúde do cidadão que trabalha. Apenas o
esforço isolado de profissionais que se articulam em programas de saúde do
trabalhador, centros de referência e atividades de vigilância realmente
efetivas abre um rastro de luz nesse universo sombrio. Mas sua atuação é
marcada, repetidamente, pela descontinuidade, quer por pressões externas dos
que se sentem ameaçados em seu poder de tratar vidas humanas desgastadas pelo
trabalho como rejeitos do processo produtivo, quer pela sucessão de novas
administrações que não priorizam esses investimentos.
Por outro lado, a essa forma inconseqüente de lidar com a saúde e
a vida, une-se a resistência dos indivíduos em aceitar a condição de doentes. O
medo de perder o emprego - garantia imediata de sobrevivência - aliado aos mais
variados constrangimentos que marcam a trajetória do trabalhador doente,
"afastado" do trabalho, mascara, em muitos casos, a percepção dos
indícios de comprometimento da saúde ou desloca-os para outras esferas da vida,
inibindo ou protelando, freqüentemente, ações mais incisivas de reivindicação
às instâncias responsáveis pela garantia da saúde no trabalho.
No entanto, a evidência dos efeitos do trabalho em condições
adversas é de tal ordem que extrapola os limites do conhecimento legitimado
como científico e ganha espaço no âmbito do senso comum. É uma relação dada e
inquestionável. Faz parte da vivência de trabalhadores, vítimas de doenças e
acidentes, mesmo quando não obtêm êxito em comprovar sua origem na atividade
exercida. Reconhecem-na suas famílias, onde tais situações repercutem, em
alguns casos, de forma drástica, e os companheiros que com eles compartilham
esse quadro de desrespeito e omissão. Identifica-a também, em certa medida, a
população em geral, inclusive porque o tema vem assumindo relevância nos meios
de comunicação.
Expressa-se, ainda, no número alarmante de agravos à saúde de
todas as ordens, mesmo que subnotificados, por razões que vão do intuito claro
em escamoteá-los aos atalhos do descaso por onde se perde significativa parcela
das Comunicações de Acidentes de Trabalho - CAT, das informações constantes nos
registros de óbitos e em outros instrumentos capazes de configurar um panorama
mais preciso dos impactos do trabalho sobre a saúde e de possibilitar ações
mais eficazes de vigilância e intervenção.
Mesmo assim, não restam dúvidas de que as inserções diferenciadas
dos indivíduos nos processos produtivos, quer no meio urbano, quer no rural,
definem padrões também diversificados de morbi-mortalidade, para os quais
contribuem outros fatores decorrentes das condições de vida a que estão
submetidos. Dessa forma, no mundo do trabalho, revela-se a imensa gama de
diferenças presentes na sociedade, onde tendem a reproduzir-se, inclusive em
seus antagonismos.
3 - O campo da Saúde do Trabalhador
A área de Saúde do Trabalhador, no Brasil, tem uma conotação
própria, reflexo da trajetória que lhe deu origem e vem constituindo seu marco
referencial, seu corpo conceitual e metodológico. A princípio é uma meta, um
horizonte, uma vontade que entrelaça trabalhadores, profissionais de serviços,
técnicos e pesquisadores sob premissas nem sempre explicitadas. O compromisso
com a mudança do intrincado quadro de saúde da população trabalhadora é seu
pilar fundamental, o que supõe desde o agir político, jurídico e técnico ao
posicionamento ético, obrigando a definições claras diante de um longo e,
presumidamente, conturbado percurso a seguir. Um percurso próprio dos
movimentos sociais, marcado por resistência, conquistas e limitações nas lutas
coletivas por melhores condições de vida e de trabalho; pelo
respeito/desrespeito das empresas à questionável legislação existente e pela
omissão do Estado na definição e implementação de políticas nesse campo, bem
como sua precária intervenção no espaço laboral.
Essa nova compreensão surge, em sua singularidade, num contexto
conjuntural caracterizado pela confluência de movimentos sociais e políticos,
de onde emergiam novos projetos de sociedade e novas estratégias de ação que
influenciavam e eram influenciados pela produção intelectual.
A saúde dos trabalhadores se torna questão na medida em que outras
questões são colocadas no País. Manifesta-se no âmago da construção de uma
sociedade democrática, da conquista de direitos elementares de cidadania, da
consolidação do direito à livre organização dos trabalhadores. Envolve,
especificamente, o empenho tanto de setores sindicais atuantes frente a
determinadas situações mais problemáticas das suas categorias, qunto ações
institucionais em instâncias diversas conduzidas por profissionais seriamente
comprometidos em sua opção pelo pólo trabalho.
Em síntese, por Saúde do Trabalhador compreende-se um corpo de
práticas teóricas interdisciplinares - técnicas, sociais, humanas - e interinstitucionais,
desenvolvidas por diversos atores situados em lugares sociais distintos e
informados por uma perspectiva comum. Essa perspectiva é resultante de todo um
patrimônio acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da
Medicina Social latino-americana e influenciado significativamente pela
experiência italiana. O avanço científico da Medicina Preventiva, da Medicina
Social e da Saúde Pública, durante os anos 60 e o início da década de 70, ao
suscitar o questionamento das abordagens funcionalistas, ampliou o quadro
interpretativo do processo saúde-doença, inclusive em sua articulação com o
trabalho. Reformula-se o entendimento "das relações entre o social e as
manifestações patológicas, a categoria trabalho aparecendo como momento de condensação,
em nível conceitual e histórico, dos espaços individual (corporal) e
social" (Donnangelo, 1983: 32). Na crítica ao modelo médico
tradicional, atinge-se a compreensão de que "a medicina não apenas cria
e recria condições materiais necessárias à produção econômica, mas participa
ainda da determinação do valor histórico da força de trabalho e situa-se,
portanto, para além dos seus objetivos tecnicamente definidos"
(Donnangelo, 1979:34).
Nesse contexto de reflexão crítica quanto à limitação dos modelos
vigentes, criam-se os alicerces para o surgimento dessa nova forma de apreender
a relação trabalho-saúde, de intervir nos ambientes de trabalho e
conseqüentemente de introduzir, na Saúde Pública, práticas de atenção à saúde
dos trabalhadores, no bojo das propostas da Reforma Sanitária Brasileira.
Configura-se um novo paradigma que, com a incorporação de alguns referenciais
das Ciências Sociais - particularmente do pensamento marxista -, amplia a visão
da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional.
1) Enquanto campo de conhecimento, Saúde do Trabalhador é, por
isso, uma construção que combina um alinhamento de interesses, em determinado
momento histórico, onde as questões, politicamente colocadas, adquirem
relevância e há condições intelectuais para discuti-las e enfrentá-las sob os
pontos de vista científico e epistemológico. Como todo campo científico vem
mediado por relações sociais, "é sempre um lugar de luta, mais ou menos
desigual entre agentes dotados de capital específico e, portanto, desigualmente
capazes de se apropriarem do trabalho científico" (Ortiz, 1983:136).
Nele estão presentes, de forma latente ou explícita, as contradições que marcam
as relações entre capital e trabalho e que permeiam as concepções, relações de
força, monopólios, estratégias e práticas dos profissionais com atribuições e
compromissos diferenciados na área. Como diria Bourdieu, transitar em um
terreno notadamente ético-político obriga a definir posições e desmitificar a
idéia de uma ciência neutra como "ficção interessada, que permite
passar por científica uma forma neutralizada e eufêmica, particularmente eficaz
simbolicamente porque particularmente irreconhecível da representação dominante
do mundo social" (Ortiz, 1983:148). Essa natureza social da produção
do saber impõe, para agentes e instituições, a legitimação na comunidade
científica, enquanto unidade produtora e legitimadora do conhecimento
científico (Khun, 1978). Instaurar o novo paradigma implica, por conseguinte,
enfrentar e extrapolar as concepções tecnicistas hegemônicas nessa área
especializada da medicina e da engenharia. Concepções consolidadas que fornecem
soluções modelares, reproduzidas na formação de profissionais e sustentadas por
volumosos recursos econômicos e técnicos. O conflito adquire dimensões extremas
no momento de intervir nos centros de trabalho. É ilustrativa, nesse sentido, a
necessidade de acionar o Ministério Público para vencer a resistência de
determinadas empresas que, fortalecidas pelo beneplácito do órgão que
tradicionalmente reconhecem para a inspeção, recusam-se a aceitar outros
parâmetros de vigilância em saúde do trabalhador.
Como campo de práxis, de produção de conhecimentos orientados para
uma ação/intervenção transformadora, a Saúde do Trabalhador defronta-se
continuamente com questões emergentes, que impelem à definição de novos objetos
de estudo, contemplando demandas explícitas ou implícitas dos trabalhadores. É,
portanto, uma área em permanente construção, configurada numa trama de relações
que reflete - na dinâmica própria dos diversos atores sociais e das lógicas que
direcionam sua ação - consciências e vontades individuais e coletivas.
Constitui-se, conseqüentemente, em arena de conflitos e
entendimentos formalizados ou pactuados entre empresas, trabalhadores e
instituições públicas frente a situações-problema, colocando em jogo, além da
identificação de sua real origem, a capacidade de negociação para enfrentá-las.
O reconhecimento, pelas empresas, da legitimidade dos interlocutores
institucionais e da representação dos trabalhadores é uma premissa desse
processo. A garantia de um desfecho favorável condiciona-se à junção do
conhecimento técnico com o saber/experiência dos trabalhadores na procura e
adoção de medidas impreteríveis, que evoluam para atingir soluções decisivas
quanto aos agravos à saúde constatados. Não se trata apenas de obter adicional
de insalubridade ou periculosidade ("monetarizar riscos"), de
instalar equipamentos de proteção, de diagnosticar nexos causais entre o
trabalho e a saúde com vistas a obter benefícios da previdência social, embora
tais procedimentos possam representar etapas de uma luta maior que é chegar às
raízes causadoras dos agravos, à mudança tecnológica ou organizativa que
preside os processos de trabalho instaurados.
A escassa representação sindical nos locais de trabalho é um dos
entraves mais imediatos nesse sentido. Alguns avanços foram conseguidos pela
criação de comissões de diversos tipos e por entendimentos com setores
empresariais minoritários que vêm atenuando a cultura autoritária de
gerenciamento. Um suporte expressivo nesse sentido foi apontado na II
Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador: a substituição das Comissões
Internas de Prevenção de Acidentes - CIPA - por Comissões de Saúde, e a
conseqüente reformulação no que tange tanto a sua representatividade - eleição
direta para todos os membros -, como a suas atribuições, que contemplariam "interferir
nas formas de produção e organização do trabalho; garantir o direito de
informação sobre matérias de saúde, segurança e meio ambiente a todos os
trabalhadores; garantir o direito de recusa, de embargo e interdição frente aos
riscos que afetam a integridade física e/ou psíquica dos trabalhadores"
(CNST, 1994:32).
Foi necessário um grande empenho de trabalhadores e técnicos para
conseguir o reconhecimento de determinadas doenças profissionais e eliminar ou
controlar alguns riscos.
Em âmbito nacional, começam a se realizar acordos tripartites
referentes ao uso do amianto, à abolição do benzeno nas indústrias do setor
alcooleiro e à implantação de programas de prevenção nas demais empresas que o
utilizam (Freitas, 1995), apesar dos previsíveis empecilhos na concretização de
decisões desse porte. No plano estadual, cabe mencionar, entre outros, a
convenção coletiva da indústria plástica de São Paulo sobre a adequação das
máquinas injetoras, responsáveis pelo maior número de acidentes nessa
categoria; a proibição do jateamento de areia na indústria naval e do mercúrio
na indústria de cloro-soda no Rio de Janeiro.
Configura-se, assim, um complexo tabuleiro de peças que se ajustam
ou se repelem, demandando estratégias diferenciadas, em função das conjunturas
locais, regionais ou nacionais. Obter restritas, porém significativas,
conquistas requer, habitualmente, enfrentar um caminho controverso em sua
essência, ao longo do qual a contribuição das instituições acadêmicas é, sem
dúvida, um imperativo. A incorporação de conhecimentos da Medicina do Trabalho
e da Saúde Ocupacional, a aplicação das normas limitadas da Higiene e Segurança
do Trabalho fazem parte desse trajeto, numa perspectiva permanente de definição
de marcos conceituais e práticas que exprimam uma visão totalizante do ser
humano em sua relação com o trabalho.
2) Enquanto campo de investigação, a Saúde do Trabalhador adota
determinados métodos de análise, conceitualizações ou "approaches".
Aplica seu instrumental analítico, segundo procedimentos que representam etapas
sucessivas de aproximação a um problema ou conjunto de problemas. Tal prática
teórica se justifica por tratar-se de uma área de estudo/intervenção que
desafia a capacidade explicativa simples, exigindo uma teorização dialética e
complexa, particularmente quando se ultrapassam os muros das unidades/locais de
trabalho.
A tarefa inicial é encontrar as respostas possíveis para os
confrontos inadiáveis, considerando os entraves econômicos, as alternativas
tecnológicas/organizacionais, os diversos planos conjunturais que
condicionam/possibilitam as mudanças necessárias. A perspectiva última
representaria a superação dos limites impostos por uma concepção
primordialmente securitária, voltada para a obtenção de benefícios concedidos a
trabalhadores doentes ou acidentados. Por um lado, essa possibilidade é remota
para um grande contingente de trabalhadores, submetidos a uma legislação que
apenas reconhece como doenças profissionais as inerentes ou peculiares a
determinados ramos de atividades que constam na lista oficial do Ministério do
Trabalho - que a rigor não se refere a patologias, mas a agentes patológicos -
e as resultantes das condições especiais ou excepcionais em que o trabalho é
realizado. Mais grave, ainda, são os entraves existentes na concessão dos
parcos benefícios para aqueles afetados por esse conjunto restrito de doenças
cujo nexo causal é aceito, ou os obstáculos para estabelecê-lo nas mesopatias
sabidamente desencadeadas e/ou agravadas pelo exercício do trabalho. Por outro
lado, o enfoque securitário, ao cingir-se à significação negativa do trabalho,
entendido como punição, nega-lhe as potencialidades para realização do ser e o
desenvolvimento de suas capacidades. Omitem-se, dessa forma, os componentes
humanizadores do trabalho, que deveriam ter presença assegurada na formulação e
desenvolvimento de programas direcionados à promoção da saúde dos trabalhadores.
As estratégias de pesquisa dependem das características das
instituições onde se desenvolvem e do grau de consolidação dos grupos de
investigação. Guardam certa aproximação das concepções de Bulmer (1978) sobre
pesquisa básica, de inteligência, estratégica e operacional. O grau de
envolvimento entre trabalhadores e técnicos/instituições pode conduzir a formas
aproximativas de pesquisa participante ou pesquisa-ação.
A referência central para o estudo dos condicionantes da
saúde-doença é o processo de trabalho, conceito recuperado, nos anos 70, das
idéias expostas por Marx, particularmente no Capítulo VI Inédito de O
Capital (Marx, 1978). Na interseção das relações sociais e técnicas que o
configuram, expressa-se o conflito de interesses entre o trabalho e o capital,
que, além de ter sua origem na propriedade dos meios de produção e na
apropriação do valor-produto realizado, consuma-se historicamente através de
formas diversas de controle sobre o próprio processo de produção. Esse controle
exercido no interior das unidades produtivas, por meio de velhos ou novos
padrões de gestão da força de trabalho, respectivamente, taylorismo, fordismo e
neotaylorismo, pós-fordismo, toyotismo, redunda na constituição de coletivos
diferenciados de trabalhadores e de uma multiplicidade de agravos potenciais à
saúde. Desvendar a dinâmica dessas situações implica um empenho permanente de
aproximação-teorização, capaz de ampliar a interpretação de um quadro
aparentemente dado e imutável, que condiciona ou determina a formulação de
alternativas tecnológicas/organizacionais, cujas repercussões não se restringem
aos centros de trabalho.
A aplicação desse instrumental analítico, dirigida mais
especificamente ao trabalho industrial (Brighton Labour Group, 1991), requer
adaptações para a compreensão de outros setores econômicos. Na área de
serviços, por exemplo, a partir do processo de trabalho, podem observar-se
vários elementos análogos às relações estabelecidas no trabalho industrial, mas
o componente de alta significância, definidor de suas atividades, é a relação
que se estabelece entre os trabalhadores e os clientes/usuários/consumidores.
Adequações semelhantes cabem também no estudo de outros segmentos não
diretamente determinados pela lei do valor ou que não impliquem formalmente
trabalho assalariado. Enquanto construção histórica, permite apreender as
permanências e as transformações atuais que geram novas formas de organizar o
trabalho, em função das necessidades de acumulação e do dinamismo da sociedade
de mercado. Em conseqüência, é possível interpretar suas implicações no novo
tipo de trabalhador que é forjado - qualificado, polivalente, terceirizado em
níveis diversos, com vínculos precários - e no crescimento do mercado informal,
bem como no contingente de excluídos social e economicamente.
A apropriação do conceito "processo de trabalho" como
instrumento de análise possibilita reformular as concepções ainda hegemônicas
que ao, estabelecerem articulações simplificadas entre causa e efeito, numa
perspectiva uni ou multicausal, desconsideram a dimensão social e histórica do
trabalho e da saúde/doença. Tais concepções, mesmo quando incluem variáveis
sócio-econômicas, na tentativa de aprimorar a compreensão das razões do
adoecimento, revestem-se de um caráter reducionista, na medida em que o social
é um elemento a mais, dentre os fatores de risco. "Os fatores de risco
de adoecer e morrer são considerados com o mesmo valor potencial de agressão ao
homem" (Mendes & Dias, 1991: 345); homogeneizados, apesar de sua
natureza diferenciada; sem a devida hierarquização (Facchini, 1994). Dessa
forma, indivíduo e ambiente são apreendidos na sua exterioridade, ignorando-se
sua historicidade e o contexto que circunstancia as relações de produção
materializadas em condições específicas de trabalhar, geradoras ou não de
agravos à saúde.
3) A Saúde do Trabalhador é, por natureza, um campo
interdisciplinar e multiprofissional. As análises dos processos de trabalho,
pela sua complexidade, tornam a interdisciplinaridade uma exigência intrínseca
que necessita "ao mesmo tempo, preservar a autonomia e a profundidade
da pesquisa em cada área envolvida e de articular os fragmentos de
conhecimento, ultrapassando e ampliando a compreensão pluridimensional dos
objetos" (Minayo, 1991:71).
Nenhuma disciplina isolada consegue contemplar a abrangência da
relação processo trabalho-saúde em suas múltiplas e imbricadas dimensões: desde
as razões sócio-históricas que lhe dão origem à forma como se concretizam nos
espaços de trabalho. Impõe-se, portanto, a convergência de pesquisadores que -
imbuídos de uma ética que dá significado à tarefa de pensar para transformar -
sejam capazes de estabelecer conexões e correspondências entre as parcelas de
conhecimento que suas disciplinas aportam, na construção de uma proposta comum.
É o próprio confronto com o real que, ao evidenciar possibilidades e
limites/incertezas de cada disciplina, impele ao entendimento entre os saberes.
Esse entendimento tem por premissa a substituição do "princípio da
hierarquia" entre as ciências/saberes pelo "princípio da
cooperação". Trata-se, portanto, de construir uma cultura que, sob o
imperativo do diálogo, da interação, do questionamento recíproco, permita, numa
aproximação à filosofia do agir comunicativo (Habermas, 1988), a fluidez entre
as diferentes linguagens.
Fixa-se como horizonte criar condições favoráveis para que os
conhecimentos da Clínica, da Engenharia, da Toxicologia, da Ergonomia, da
Epidemiologia e das Ciências Sociais e Humanas, frente à necessidade de
responder a demandas concretas, sejam capazes, concomitantemente, de
fortificarem-se em seu campo particular e flexibilizarem suas fronteiras,
estabelecendo interfaces entre seus diversos corpos conceituais/metodológicos e
engendrando novas práticas que ensejem formas mais abrangentes e totalizadoras
de aproximar-se da realidade.
Incorporar o referencial de outras disciplinas torna mais profícuo
o olhar de cada uma delas sobre o mesmo objeto e a resultante ultrapassa a soma
de enfoques isolados. Nessa perspectiva, o quantitativo não se opõe ao
qualitativo, o mensurável não nega o imensurável, os determinantes imediatos
não são descontextualizados dos gerais, o saber teórico dos técnicos se abre à
contribuição do conhecimento tecido no cotidiano dos trabalhadores.
Na prática, porém, esse esforço de entender para intervir no
processo de trabalho em relação com a saúde e a doença encontra barreiras
arraigadas de compatibilização dos conceitos. Obriga a superar todo um passado
de fragmentação da realidade, reproduzido na formação dos profissionais desde a
graduação, que se reflete na tendência à manutenção de ilhas de saber/poder e
no receio diante da possibilidade de construir pontes entre as diversas áreas
de conhecimento. Entretanto, quando se persegue a construção coletiva do saber,
com todas as dificuldades a ela inerentes, ultrapassam-se muitas das limitações
próprias da interdisciplinaridade assumida, numa tarefa solitária, por um
pesquisador individual.
Os avanços nessa direção começam a evidenciar-se. Por um lado, os
cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, de caráter
multiprofissinal, instituídos no âmbito da Saúde Coletiva vêm construindo um
terreno propício à crítica de visões tecnicistas e reducionistas ainda
prevalentes na área. Por outro, mesmo as pesquisas multidisciplinares num campo
constituído predominantemente por profissionais de formação
médico-epidemiológica representam passos significativos no caminho da
interdisciplinaridade. O surgimento de algumas propostas institucionais que
estimulam a construção e amadurecimento de equipes de pesquisadores de
formações diversas tem demonstrado a potencialidade dessa nova perspectiva de
investigação/ação. Mas tal potencialidade pode ficar comprometida diante de
alguns equívocos, tais como: a incorporação, sem o devido rigor, dos conceitos
de outras disciplinas; a polissemia de noções comuns que, por sua falsa
aparência de transitividade, escondem as profundas diferenças que as separam; a
substituição pura e simples de análises fragmentadas por sínteses simplificadoras.
O tratamento interdisciplinar implica a tentativa de estabelecer e
articular dois planos de análise: o que contempla o contorno social, econômico,
político e cultural - definidor das relações particulares travadas nos espaços
de trabalho e do perfil de reprodução social dos difererentes grupos humanos -
e o referente a determinadas características dos processos de trabalho com
potencial de repercussão na saúde. Entre os conceitos e noções extraídos dessas
características, encontram-se os classificatórios de risco - fundamentalmente
associados às propriedades materiais e mensuráveis quantitativamente dos
objetos, meios e ambientes de trabalho - e os de exigências ou requerimentos,
que dizem respeito a componentes mais qualitativos derivados da organização do
trabalho. Embora esses conceitos sejam complementares e inseparáveis, numa
visão ampla de ambiente de trabalho, as concepções legais e as práticas
hegemônicas acabam por focalizar predominantemente no ambiente físico as
situações capazes de defini-lo como insalubre ou perigoso. Já a noção de
penosidade (Sato, 1991), ao vincular os esforços exigidos, particularmente pela
organização do trabalho, ao contexto geral do trabalho, aponta para uma nova
leitura, que vem contrapor-se a um reducionismo que desconsidera componentes
essenciais à apreensão do trabalho humano em sua integralidade.
Laurell & Noriega (1989), no intuito de distanciarem-se do
conceito de risco, por considerarem-no insuficiente para apreender a lógica
global do processo de trabalho, utilizam-se do que denominam categoria carga de
trabalho - abarcando tanto as físicas, químicas e mecânicas quanto as
fisiológicas e psíquicas - que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo
do trabalhador. Assinalam, no entanto, que estas últimas "não têm
materialidade visível externa ao corpo humano", apontando, sem
sistematizar, os componentes do processo de trabalho capazes de gerá-las.
Posteriormente, Noriega (1993) passa a atribuir às exigências - enquanto
requerimentos decorrentes da organização do trabalho e da atividade do
trabalhador - um papel relevante na conformação dos perfis de saúde-doença dos
coletivos de trabalhadores, ao distingui-las dos riscos, relacionados aos
objetos e meios de trabalho.
Para melhor compreender como riscos ou cargas e exigências se
manifestam concretamente nos processos de trabalho, é pertinente o instrumental
desenvolvido pela corrente francesa da Ergonomia Situada (Vidal, 1995), com
base na distinção entre tarefa prescrita e atividade real. Essa distinção, previsível,
diante da variabilidade de condições de trabalho, ocorre sobretudo em face de
situações que exigem a interferência constante dos trabalhadores para manter a
continuidade da produção ou prevenir eventos acidentários. Um processo de
investigação que objetive formular propostas de transformação requer um
minucioso trabalho empírico que capte e potencialize o saber e os processos
psíquicos mobilizados na atividade. Embora não voltado diretamente para o campo
da saúde, esse enfoque vai trazer-lhe uma contribuição singular, ao permitir
uma aproximação efetiva para ir desvendando o enigma do trabalho.
A conotação dada a esses conceitos ou noções mediadores do
processo de trabalho conduz a interpretações diferenciadas, complementares ou
não, de suas repercussões individuais e/ou coletivas para a saúde. Se
predominam os referentes às condições materiais, terão ênfase determinados
agentes capazes de ocasionar patologias diagnosticadas por critérios clínicos e
toxicológicos. Se o foco de atenção volta-se prioritariamente para os aspectos
ligados à organização do trabalho, aparecem com maior significância os efeitos
de caráter psicossocial.
Os postulados da Psicopatologia do Trabalho ou, mais recentemente,
da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994) abrem novas
perspectivas superadoras da visão monolítica e restritiva da nocividade do
trabalho que induz a caminhar pelo terreno das afecções mentais. Em
contrapartida, buscam desvelar na organização real do trabalho as estratégias
adaptativas intersubjetivas, de defesa/oposição, latentes na tensão entre a
procura de prazer/reconhecimento dos sujeitos e os constrangimentos externos
impostos, independentemente de suas vontades, pelas situações de trabalho. As
manifestações patológicas de sofrimento são a expressão do fracasso dessa
mobilização subjetiva. Sob esse prisma, caberia entender a dimensão
psicossocial da noção de desgaste - enquanto "perda da capacidade
potencial e/ou efetiva corporal e psíquica" (Laurell & Noriega,
1989:110) -, embora esses autores afirmem, ao referir-se às cargas psíquicas,
que estas dizem respeito sobretudo às manifestações somáticas e não tanto às
psicodinâmicas.
A aplicação desse conjunto de conceitos e noções mediadoras
possibilita diversas formas de tratamento para identificar situações de
exposição de grupos/categorias/setores e seus efeitos potenciais ou reais sobre
a saúde, configurando perfis epidemiológicos diferenciados. A conformação
desses agrupamentos, em suas homogeneidades e diferenciações internas, vem
condicionada à adoção de estratégias que combinem abordagens quantitativas e
qualitativas.
Finalmente, uma premissa metodológica é a interlocução com os
próprios trabalhadores, depositários de um saber emanado da experiência e
sujeitos essenciais quando se visa a uma ação transformadora. O reconhecimento
desse saber/poder foi o sustentáculo do "Modelo Operário Italiano"
(Oddone, 1986), que emergiu no bojo do dinamismo dos movimentos sociais, em
finais dos anos 70, tendo como foco particular a mudança e o controle das
condições de trabalho nas unidades produtivas. A não-delegação, expressa pela
recusa em transferir para técnicos ou representantes sindicais a tarefa de
sistematizar o conhecimento obtido pelos grupos submetidos às mesmas condições
de trabalho - grupos homogêneos - e a validação consensual, resultante da
discussão coletiva das avaliações que pautariam os processos reivindicatórios,
constituíram-se nos pressupostos básicos desse modelo. Paradigmático à época em
que foi concebido, mesmo confrontadas as potencialidades e limitações de um
enfoque centrado eminentemente na experiência-subjetividade operária, serve de
contraponto a formas hegemônicas de construção de conhecimento e intervenção
nos locais de trabalho. Se tentar estendê-lo, na sua íntegra, a outros
contextos históricos é inviável, inspirar-se em sua essência é um caminho
fértil, desde que estabelecidos elos de complementaridade entre o saber
procedente da prática cotidiana e a produção teórica gerada em outros espaços
onde se reflete sobre o mundo do trabalho.
A problemática atual
Inicialmente, cabe ressaltar que a concepção de Saúde do
Trabalhador e a própria prática a ela inerente orientaram-se, de forma
predominante, para o trabalho industrial, tendo como referência um modelo que,
em virtude das profundas transformações recentes, também precisa ser repensado.
Depara-se, no momento atual, com um quadro em que convivem situações mais
evidentes da violência do trabalho, não resolvidas ou parcialmente enfrentadas
- como pneumoconioses, doenças provenientes de riscos físicos, intoxicações
crônicas e agudas, associadas à utilização de tecnologias obsoletas e de
substâncias banidas do mundo desenvolvido, bem como a formas de organização do
trabalho que desconsideram a necessidade de contemplar e expandir as
potencialidades humanas -, com as decorrentes de uma nova lógica produtiva,
marcada pela globalização da economia.
As imposições do mercado internacional quanto à qualidade de
produtos e processos produtivos, numa economia extremamente competitiva,
induzem a uma reestruturação industrial flexível, que alia automação e outros
avanços tecnológicos a novas modalidades organizacionais e de gestão/controle
da força de trabalho. Essas mudanças significativas na cultura de produzir
apontam para melhorias no ambiente e nas relações de trabalho, para um grau
maior de participação e envolvimento, mas demandam um trabalhador
qualificado/polivalente, condizente com um repertório de habilidades e
comportamentos. Interpretar as repercussões desses compromissos e exigências,
cujos potenciais impactos são mais sutis, particularmente do ponto de vista
psicossomático, é uma tarefa ainda a ser realizada.
A maior repercussão da política de reconversão industrial, não
obstante, diz respeito aos destinos da força de trabalho, à sua redução
seletiva e reacomodação espúria, por meio de novos padrões de terceirização e
subcontratação; à precarização do trabalho e à progressiva exclusão, do mercado
formal, de trabalhadores cujo perfil não se ajusta às recentes imposições ou
cujos corpos estão precocemente lesados. Esse contingente de trabalhadores
desprotegidos, ignorados pelas empresas, em constante rotação, sem direito à
assistência e ao controle de sua saúde ou sem reconhecimento da condição de
cidadão-trabalhador doente, representa um dos grandes desafios para a
investigação e intervenção no âmbito da Saúde do Trabalhador.
À deteriorização do trabalho aliam-se propostas de flexibilidade
nos contratos laborais, sob meros ditames do mercado, socialmente inaceitáveis.
Constituem-se em alternativas para diminuir encargos sociais das empresas e
absorver setores da população desempregada, sem proteção ou garantias,
impondo-lhes o ônus da insegurança e agravando as desigualdades. Trata-se de
uma solução que não dá conta da questão estrutural do desemprego. No Brasil,
temos hoje cerca de 4,4 milhões de desempregados, considerando a taxa de
desemprego de 6,2% registrada pela última Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio, em 1993. Esse quadro é mais preocupante se consideradas as previsões
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que estimam seu
crescimento acelerado, baseadas no que vem ocorrendo em países como Israel e
Argentina, a partir dos primeiros anos após a adoção da âncora cambial para
baratear importações e segurar os preços internos.
O direito ao trabalho é a demanda mais crucial e complexa do
momento presente. Garanti-lo reverteria significativamente os constatados
reflexos do desempregro sobre a saúde da população trabalhadora e de suas
famílias. Discute-se, por um lado, que o trabalho está se exaurindo na
sociedade do trabalho, ou se questiona a centralidade do trabalho produtivo
(Offe, 1989). Por outro, reconhece-se a significância do trabalho, não apenas
como condição de sobrevivência, mas por situar-se na própria gênese da
sociabilidade humana. Enquanto isso, os ajustamentos à nova economia global,
particularmente em países como o Brasil, têm acontecido às custas de uma
deteriorização das condições sociais e de um hiato, cada vez maior entre os grupos,
no perfil de distribuição de renda. O Estado, em sintonia com um ambiente
político pautado na liberação das forças do mercado, tende a se afastar de
intervenções significativas no âmago das relações de produção hegemônicas, onde
se localizam as principais fontes para o enfrentamento abrangente da crise
social. Em conseqüência, as maiores parcelas de recursos provenientes de
segmentos da classe trabalhadora passam a ser geridos pela iniciativa privada.
Parte desse acervo, nos cofres empresariais, é negociado junto a várias redes
de serviços médicos de questionável eficácia.
Está, ainda, por ser estabelecido um compromisso social claro que,
objetivando se contrapor à redução do papel institucional e regulatório do
Estado, encontre um equilíbrio entre os imperativos do mercado e os legítimos
direitos ao trabalho, à segurança e proteção social. Organizações políticas e
da sociedade civil, inclusive as de classe - apesar do caráter corporativo
presente em suas práticas -, podem desempenhar um papel expressivo na
formulação e defesa das alternativas viáveis.
A mobilização dos segmentos exluídos/despossuídos, sua afirmação
como sujeitos sociais, potencialmente capazes de "assumir ações mais
ousadas, uma vez que (...) não têm mais nada a perder no universo da
sociabilidade do capital" (Antunes, 1995:90), impulsionaria, por
certo, a procura de maior eqüidade no direcionamento das soluções. No contexto
atual, extremamente desfavorável ao pólo trabalho e, em virtude da fragilidade
na aglutinação efetiva desses segmentos, as propostas destinadas ao crescimento
do nível de emprego voltam-se para alternativas como: incentivos à contratação,
manutenção e capacitação da mão-de-obra; acordos mais flexíveis de tempo de
trabalho, limitações de horas extras, redução da jornada de trabalho e até a
reformulação do seguro-desemprego. A luta pela manutenção do emprego torna-se,
portanto, prioritária e obriga a relegar as questões de saúde, que começavam a
tomar corpo, a um plano secundário nas agendas sindicais.
A Saúde do Trabalhador, enquanto questão vinculada às políticas
mais gerais, de caráter econômico e social, implica desafios das mais diversas
ordens. Desde os colocados a partir do cenário macroeconômico que impõe
diretrizes e prioridades do mercado, aos que se relacionam mais diretamente ao
setor saúde. Nesse universo multifacetado, estão presentes as resultantes das
políticas atuais de emprego, salário, habitação, transporte, educação, entre
outras, que refletem o descompromisso do Estado com os segmentos da população
marginalizada dos bolsões de riqueza e suas cercanias.
Formular uma política de saúde do trabalhador significa, portanto,
contemplar essa ampla gama de condicionantes da saúde e da doença.
Especificamente para o setor público de saúde, do âmbito municipal ao federal,
é premente a necessidade de consolidar ações de saúde do trabalhador que
abranjam da vigilância à assistência em seu sentido amplo. Porém, a limitada
intervenção da Saúde Pública num campo que nunca foi objeto central de
preocupação, agudizada pelos percalços da gestão financeira e de recursos
humanos na implementação do Sistema Único de Saúde, tem se refletido na
tendência de tratar como questão menor a atenção integrada, mas diferenciada,
aos trabalhadores. Essa ausência de respostas efetivas vem servindo de
justificativa para que o setor privado se incumba gradativamente de
determinadas tarefas que, em princípio, seriam um compromisso fundamental do
Estado. Dessa forma, as iniciativas laudáveis de criação de programas ou
centros de referência com essa finalidade têm resultado, de modo geral, mais do
empenho de alguns profissionais do que do necessário processo de
institucionalização, fruto de uma política assumida.
Paradoxalmente, chegou-se a uma maior visibilidade social dos
problemas que afetam a qualidade de vida da classe trabalhadora. Avança-se na
compreensão dos agravos à saúde em diferentes processos de trabalho industrial,
bem como nas atividades rurais, sobretudo quanto à utilização indiscriminada de
agrotóxicos; iniciam-se estudos relativos ao setor serviço, incluídas as
pesquisas sobre os profissionais de saúde; percebe-se com mais clareza a
especificidade do trabalho feminino, valendo-se de várias investigações. Mas só
pontualmente obtêm-se respostas proporcionais à relevância das questões
levantadas. No entanto, um universo de indagações, do qual se atinge apenas o
contorno, emerge como desafio ainda a enfrentar: desde velhas situações
praticamente intocadas, como o trabalho escravo e o trabalho infantil, às
decorrentes de um modelo de produção seletivo e excludente que vem ampliando a
dimensão da rua como espaço de trabalho, com todas as incertezas,
vulnerabilidades e riscos que esse espaço significa, em relação tanto a
acidentes e violências, como à produção da própria sobrevivência. A ampliação
dos objetos de estudo e a reformulação de alguns referenciais conceituais e
metodológicos tornam-se assim premissas fundamentais, sob o ponto de vista
investigativo.
A cada dia, ficam mais evidentes as proporções da empreitada nesse
campo marcado por avanços, limitações e, nesse momento, por muitos impasses.
Enfrentá-los é uma tarefa coletiva, que demanda empenho recíproco no
estabelecimento de pactos entre centros acadêmicos, instituições públicas e da
sociedadade civil, particularmente com instâncias organizativas de
trabalhadores. Essa tarefa faz parte do compromisso democrático de viabilizar
um desenvolvimento sustentável, fundado no resgate da dívida social e na
revitalização e revalorização do caráter público do Estado para assegurar a
efetividade dos direitos de cidadania.
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