segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

SAÚDE DO TRABALHADOR

SAÚDE DO TRABALHADOR 

HENRIQUE CAETANO NARDI

Entende-se por saúde do trabalhador o conjunto de conhecimentos oriundos de diversas disciplinas, como Medicina Social, Saúde Pública, Saúde Coletiva, Clínica Médica, Medicina do Trabalho, Sociologia, Epidemiologia Social, Engenharia, Psicologia, entre tantas outras, que – aliado ao saber do trabalhador sobre seu ambiente de trabalho e suas vivências das situações de desgaste e reprodução – estabelece uma nova forma de compreensão das relações entre saúde e trabalho e propõe uma nova prática de atenção à saúde dos trabalhadores e intervenção nos ambientes de trabalho.

Esse conceito situa-se no quadro geral das relações entre saúde e trabalho e apresenta-se  como um modelo teórico de orientação às ações na área da atenção à saúde dos trabalhadores, no seu sentido mais amplo, desde a promoção, prevenção, cura e reabilitação, incluídas, aí, as ações de vigilância sanitária e epidemiológica. 

Esse modelo vai orientar a aplicação do conhecimento técnico oriundo das disciplinas que se atêm a este campo e que foram exemplificadas anteriormente. O estudo dos modos de desgaste e reprodução  da força de trabalho apresenta uma influência fundamental do materialismo histórico. 

A metodologia que orienta esse estudo estabelece a análise dos impactos dos ambientes e das formas de organização e gestão do trabalho na vida dos trabalhadores a partir da determinação histórica e social dos processos de saúde e doença (Laurell e Noriega, 1989).


O termo surge no Brasil no bojo do Movimento pela Reforma Sanitária, que se intensificou no país a partir da década de 1980, tendo, na Reforma Sanitária Italiana, seu exemplo inspirador (Teixeira, 1989). 

A união dos esforços de técnicos de saúde ligados às universidades e ao Ministério da Saúde com os trabalhadores, dentro da emergência do Novo Sindicalismo, estabeleceu as bases desse conjunto de saberes e práticas denominado Saúde do Trabalhador. 

Ela nasce como contraponto aos modelos hegemônicos das práticas de intervenção e regulação das relações saúde-trabalho da Medicina do Trabalho, Engenharia de Segurança e Saúde Ocupacional. 

A modificação da terminologia dos serviços de atenção à saúde de Serviços de Medicina do Trabalho e/ou Saúde Ocupacional para Serviços de Saúde do Trabalhador segue uma tendência mundial nos países que passaram por movimentos semelhantes, como nos aponta Parmeggiani (1987). 

O momento culminante de mobilização popular pela saúde do trabalhador no Brasil dá-se na VIII Conferencia Nacional de Saúde, em 1986, e na I Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, também em 1986. a afirmação do  movimento dentro do campo institucional 
acontece na IX Conferência Nacional de Saúde e na II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador em 1994 (Dias, 1994). 

Consolida-se, dessa forma, como conceito dentro dos textos legais da Constituição de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080) de 1990. 

Tem-se a seguinte definição legal no artigo VI da lei 8.080: “conjunto de atividades que se destina, através de ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho” (Brasil, 1990).

A característica que diferencia a Saúde do Trabalhador, em seu modelo teórico, é a afirmação do trabalhador como sujeito ativo do processo de saúde-doença (incluindo aí a participação efetiva nas ações de saúde) e, não simplesmente, como objeto da atenção à saúde, tal como é tomado pela Saúde Ocupacional e pela Medicina do Trabalho. 

Além desse fato, trata-se da construção de um saber e de uma prática interdisciplinares que se diferenciem de ma ação centrada no conhecimento médico e nos saberes divididos em compartimentos (Engenharia, Psicologia, Medicina, Enfermagem, Serviço Social, etc.) na forma de uma equipe de técnicos das várias profissões que não estabelece uma interlocução como, tradicionalmente, tem-se dado na Medicina do Trabalho e na Saúde Ocupacional, respectivamente. 

O estudo da Medicina do Trabalho mostra-nos que ela se diferencia, radicalmente, das análises clássicas da profissão médica realizadas por Parsons (apud Oliveira, 1995) e Freidson (apud Oliveira, 1995), que estabelecem, como objetivo da profissão, o bem-estar do paciente e a cura da doença, a partir do modelo de prática liberal, autônoma e dotada de neutralidade afetiva. 

Ela surge no contexto brasileiro e mundial a partir da necessidade de o Estado intervir nas relações capital-trabalho e regulamentar os ambientes de trabalho. O foco central dessa medicina, como o próprio nome denota, é a “saúde” do trabalho, da produção e, portanto, não é a saúde do trabalhador. Essa especialidade nasce e se constitui a partir da regulação de um corpo de normas legais que define sua prática. 

Não é autônoma, pois desse corpo de leis, que, por sua vez, expressam, como todo corpo legal, as relações de poder em uma determinada sociedade e, portanto, as relações de classe. Não é uma atividades liberal, pois a grande parte dos profissionais é empregada de empresas, sindicatos e/ou faz parte do sistema de saúde pública e vai espalhar as práticas institucionais. Isso, por sua vez, aniquila a possibilidade afetiva com relação ao trabalhador. 

Ainda com referência à análise estrutural-funcionalista de Parsons Freidson, a legitimidade do exercício da Medicina do Trabalho não se constrói a partir de um consenso social de que esse conhecimento seja legítimo e, dessa forma, a procura pelo profissional seja espontânea, uma vez que o trabalhador é obrigado a passar pelo crivo e julgamento de sua aptidão ou incapacidade para o trabalho. 

Essa é uma exigência legal para ter acesso aos postos  de trabalho e se constitui na tarefa principal do médico, ou seja, ser o “juiz” dos mais aptos, para que a produção seja amais “saudável”. Esse objetivo da Medicina do trabalho encontra-se explicitado em livros-textos básicos para o exercício profissional (Schüller Sobrinho, 1995). 

A construção do campo da Saúde do trabalhador , como uma reivindicação dos movimentos sindical e dos técnicos de saúde ligados à reforma sanitária, expressa uma profunda discórdia com o modelo da prática da Medicina do Trabalho, criticando o envolvimento excessivo dos médicos do trabalho com o Capital. 

Tal fato determina ações profissionais classificadas como antiéticas (Augusto, 1987, p. 125; Lurie, 1994), por assumirem, os médicos, posturas de defesa do Capital em detrimentos da saúde dos trabalhadores. 

Os teóricos do campo da Saúde dos Trabalhadores apontam, também, para os limites do conhecimento específico da medicina em lidar com questões que envolvem o conflito capital-trabalho. O surgimento do termo Saúde do Trabalhador passa a colocar a saúde dos trabalhadores como principal objetivo da prática nesse campo, ao invés do julgamento da aptidão para o trabalho. 

Apesar de estar definida e normalizada em textos legais, a implantação de fato do modelo proposto para a saúde do trabalhador – que deve surgir os princípios da universalidade, equidade e integralidade, tendo como perspectiva o controle social das políticas e dos serviços de atenção à saúde dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) – enfrenta a resistência dos setores hegemônicos da medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. 

Esses segmentos estão enraizados nos serviços médicos das empresas e nas associações profissionais, assim como dentro de setores do Ministério do Trabalho (Fadel de Vasconcellos, 1994). 

As principais críticas advindas dos setores tradicionais da Medicina do Trabalho, da Saúde Ocupacional e da Engenharia de Segurança em relação à Saúde dos Trabalhadores, referem-se ao excesso de influência das Ciências Sociais e a um envolvimento ideológico à esquerda de seus defensores, por representarem uma proposta estatizante e socializante para a prática da Medicina (Pereira Junior, 1987). 

Além desses fatos, existem todas as dificuldades de implantação do SUS propriamente dito. Trata-se do enfrentamento vivido por todos os setores que dependem de uma intervenção direta do Estado. 

Tal confronto é característico desse momento de uma política de liberalismo econômico e, portanto, de um Estado Mínimo (Vilaça Mendes, 1993). O Brasil, de certa forma, chegou atrasado na História ao propor uma política de welfare state (bem-estar social), dentro do modelo social-democrático adotado no pós-guerra na Europa, pois o fez em um momento em que o mundo está sendo varrido pela onda neoliberal. 

Sem ter conseguido estabelecer-se e enraizar-se dentro do sistema público de atenção à saúde, a Saúde do Trabalhador enfrenta as correntes da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, que se beneficiam de uma intervenção estatal mínima, ficando a relação capital-trabalho no campo da saúde sem a mediação direta do Estado. 

Esse é o risco que corre a Saúde do Trabalhador no Brasil e os modelos similares no resto do planeta. Na França, já existem estudos referentes às conseqüências da precarização do trabalho – decorrente da flexibilização dos contratos de trabalho – sobre a saúde dos trabalhadores, como resultado das políticas de liberalismo econômico. (Huez, 1994). 

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