quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

QUALIDADE DO USO DE MEDICAMENTOS POR IDOSOS: UMA REVISÃO DOS MÉTODOS DE AVALIAÇÃO DISPONÍVEIS

QUALIDADE DO USO DE MEDICAMENTOS POR IDOSOS: UMA REVISÃO DOS MÉTODOS DE AVALIAÇÃO DISPONÍVEIS



Quality assessment of drug use in the elderly: a review of available evaluation methods

Ciência & Saúde Coletiva
ISSN 1413-8123 versão impressa
Ciênc. saúde coletiva v.10 n.4  Rio de Janeiro out./dez. 2005

Andréia Queiroz RibeiroI; Cristiana Martins do Couto AraújoI; Francisco de Assis AcurcioI; Sérgia Maria Starling MagalhãesI; Flávio ChaimowiczII
IDepartamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia da UFMG. Campus Pampulha. Av. Presidente Antônio Carlos, 6.627, 31270-901, Belo Horizonte MG. aribeiro@farmacia.ufmg.br
IIDepartamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina da UFMG


RESUMO
O artigo apresenta diferentes métodos de avaliação da adequação da terapia farmacológica para idosos, a partir da revisão da literatura no período de 1990 a 2003. Na década de 1990, foi criada uma variedade de métodos os quais são classificados, de acordo com a utilização de critérios, em implícitos, explícitos e aqueles que combinam ambos. São apresentadas as vantagens e desvantagens de cada método e observa-se que os métodos que utilizam combinação de critérios permitem uma melhor avaliação, uma vez que incorporam um maior número de elementos envolvidos no processo de utilização de medicamentos. A adequação ou adaptação destes métodos à realidade brasileira e a incorporação dos mesmos às práticas avaliativas em saúde podem se constituir em um passo fundamental na promoção do uso racional de medicamentos no país.
Palavras-chave: Idosos, Farmacoterapia, Uso inadequado de medicamentos, Avaliação

ABSTRACT
The article presents different methods for the assessment of the pharmacotherapy appropriateness for the elderly, after the literature review within 1990 and 2003. In the 1990s a great variety of methods was created and they are classified according to the criteria use in implicit, explicit and the ones that blend both implicit and explicit criteria. The advantages and disadvantages of each method are presented and it is observed that methods that use a criteria combination allow a better assessment, since they incorporate a greater number of evolved elements in the drug use process. The suitability and adaptation of these methods to the Brazilian reality and their incorporation in the evaluative practices in health can constitute an essential step to the rational drug use in the country.
Key words: Elderly, Pharmacotherapy, Inappropriate drug use, Assessment



Introdução

O envelhecimento da população brasileira deverá se acelerar substantivamente a partir de 2005, quando as coortes de nascidos nos períodos de elevada fecundidade e baixa mortalidade das décadas de 1940 a 1960 começarem a alcançar os 65 anos. Estima-se que a proporção de idosos saltará dos atuais 5,1% para 14,2% em apenas 50 anos, fenômeno cuja magnitude e velocidade será igualada por menos de 10 países em todo o mundo (Chaimowicz, 1997). Esse fenômeno repercute nas diferentes esferas das estruturas social, econômica, sanitária, política e cultural da sociedade, uma vez que os idosos, freqüentemente portadores de múltiplas doenças crônico-degenerativas, possuem demandas específicas para obtenção de adequadas condições de vida (Siqueira et al., 2002). Tais demandas fazem do envelhecimento tema emergente de investigação nas distintas áreas de conhecimento, tais como a Farmacoepidemiologia. Esta tem como foco o estudo da distribuição e dos determinantes dos acontecimentos relacionados com os fármacos nas populações e a aplicação desses estudos a uma terapêutica farmacológica eficaz (Last, 1989).
Com as alterações fisiológicas e patológicas relacionadas ao envelhecimento, há um aumento dos riscos associados ao uso de fármacos. Dentre os fatores que contribuem para este aumento destacam-se o comprometimento da função renal para a depuração de fármacos que são primariamente excretados pelos rins; a redução do fluxo sanguíneo e do processo de biotransformação hepática; o aumento da gordura corpórea, o que resulta no aumento do volume de distribuição de fármacos lipossolúveis. Além disso, alterações da sensibilidade de receptores e as modificações da resposta dos sistemas fisiológicos comprometidos por doenças podem alterar a ação dos fármacos (Katzung, 2002). Permeando todos estes fatores, destaca-se a influência da qualidade da prescrição e do uso de medicamentos neste grupo.

Nesta perspectiva, nos países desenvolvidos, a partir de meados da década de 1980 e, principalmente, da década de 1990, a preocupação com os efeitos prejudiciais do uso de medicamentos por idosos impulsionou prescritores, farmacêuticos e pesquisadores a desenvolverem e aplicarem diversos métodos e instrumentos para identificar padrões inadequados de prescrição e problemas farmacoterapêuticos envolvendo este grupo populacional.

No Brasil, estudos e aplicações sobre esta temática são escassos. Informações sobre o padrão de uso de medicamentos entre idosos brasileiros são provenientes de estudos conduzidos nos municípios do Rio de Janeiro, Fortaleza e nas cidades de Campo Belo e Bambuí, em Minas Gerais (Rozenfeld, 1997; Miralles & Kimberlin, 1998; Mosegui et al., 1999; Chaimowicz et al., 2000; Coelho Filho et al., 2004). Apenas dois destes estudos investigaram aspectos relacionados à qualidade da farmacoterapia. No estudo realizado no Rio de Janeiro verificou-se que 17% dos medicamentos utilizados eram inadequados para uso por idosos. Além disso, 14% das idosas faziam uso de medicamentos redundantes e 16% estavam expostas às principais interações medicamentosas e, portanto, sujeitas às conseqüências desses eventos (Mosegui et al., 1999). Em Fortaleza, quase 20% dos idosos usavam pelo menos um medicamento considerado inadequado para esta faixa etária (Coelho Filho et al., 2004). Essa carência de informações caracteriza uma das dificuldades para a implementação de uma política de assistência farmacêutica adequada à realidade brasileira e, conseqüentemente, para a melhoria da qualidade da atenção à saúde do idoso no país.

O objetivo do presente artigo é revisar os principais instrumentos utilizados no âmbito internacional para avaliar a adequação da farmacoterapia em idosos, bem como discutir a aplicação destes instrumentos à luz da realidade brasileira.

Métodos

Foi realizada busca na base de dados Medline por trabalhos referentes a critérios de definição de uso inadequado de medicamentos por idosos no período de 1990 a 2003. As palavras-chave utilizadas foram older adults, elderly, prescription, criteria, inappropriate, appropriateness.

A combinação destes descritores identificou um total de 106 documentos distintos, dentre os quais 46 foram descartados por se referirem a critérios de adequação de prescrição sobre uma única classe de medicamentos ou sobre terapias não farmacológicas. Assim, restaram 60 documentos potenciais para análise. Deste universo, quatro documentos se referiam à implementação de programas computacionais para aprimorar o processo de prescrição e 29 artigos não propunham critérios ou métodos específicos. Estes artigos foram excluídos, restando 27 para análise. Nos documentos selecionados para análise foi realizada, posteriormente, uma busca manual das referências listadas sobre o tema em questão. Tais referências foram obtidas em bibliotecas ou por meio de contato com os autores responsáveis pelas mesmas. Seguindo esse procedimento, obteve-se a descrição de seis critérios que foram discutidos nessa revisão. Vale ressaltar que apenas os estudos que tratavam da descrição dos critérios foram referenciados, uma vez que este era o objetivo da presente revisão.

Resultados
A qualidade do uso de medicamentos pode ser abordada sob diferentes aspectos, tais como a prática de polifarmácia, a subutilização de fármacos necessários e o uso inadequado de especialidades terapêuticas. Conceitualmente, um medicamento é considerado inadequado quando os riscos de seu uso superam seus benefícios (Beers et al., 1991).

Na atualidade, há uma variedade de métodos destinados à avaliação da adequação farmacoterapêutica para idosos. De uma maneira geral, estes métodos se baseiam em critérios implícitos, explícitos, ou na combinação de ambos. Os métodos implícitos caracterizam-se por revisão clínica dos medicamentos em uso levando em conta as práticas consideradas adequadas nas revisões de literatura médica sobre as doenças específicas apresentadas pelos pacientes. Entretanto, não têm uma preocupação de definir ou padronizar critérios e carecem de uma estrutura de revisão baseada em consenso. Os métodos explícitos, mais limitados no que se refere à adequação clínica, geralmente são baseados em métodos de consenso e incluem a utilização de listas contendo medicamentos a serem evitados por idosos (Shelton et al., 2000).

Para fins desse artigo, serão apresentados os métodos mais importantes, no sentido de serem pioneiros, serem referência para adaptações e serem mais amplamente utilizados.

Métodos implícitos

Estes métodos caracterizam-se por revisões terapêuticas específicas para cada indivíduo e não estabelecem critérios de avaliação. Um exemplo é o Medication Reduction Project (MEDRED) desenvolvido em Dakota do Sul (Estados Unidos) em 1993. Trata-se de um programa de base comunitária fundamentado na farmácia clínica e com intervenções educativas para reduzir a polifarmácia em idosos (Schrader et al., 1996). Conduzido em diferentes etapas, o MEDRED possui cinco metas, quais sejam, reduzir o número de medicamentos utilizados; ajustar as doses; aumentar a adesão à terapia; identificar os impactos social, funcional e econômico de um tratamento medicamentoso; e incentivar o uso de alternativas não farmacológicas quando clinicamente indicado.

Na condução do MEDRED, a etapa de revisão dos medicamentos foi realizada por um farmacêutico especialista em geriatria. Esta revisão ocorreu de maneira individualizada para 83 idosos da comunidade, com enfoque sobre os seguintes aspectos: conhecimento do indivíduo sobre o medicamento e a doença em tratamento, existência de um diagnóstico que justificasse a indicação do medicamento, efetividade e adequação do fármaco e da dose utilizada, existência de condições clínicas relacionadas ao uso de medicamentos (ou reação adversa) e a adesão (Schrader et al., 1996).

Embora os programas que utilizam estes métodos alcancem os objetivos desejados, tais como a redução do número de medicamentos utilizados, algumas desvantagens incluem o fato de que os revisores não dispõem de orientações preestabelecidas que conduzam o processo de revisão, o que faz com que esta ocorra de forma subjetiva, baseada na experiência clínica do revisor. Ainda que sejam mais próximos à realidade observada no cotidiano da atenção à saúde do idoso, sua validade e confiabilidade são de difícil avaliação.
 Métodos explícitos
Um dos métodos explícitos mais usados na avaliação do uso inadequado de medicamentos tem sido o proposto por Beers (Beers et al., 1991; Beers, 1997; Fick et al., 2003).

Em 1991, Beers et al. criaram o primeiro conjunto de critérios para identificar o uso inadequado de medicamentos por idosos institucionalizados nos Estados Unidos. Este trabalho envolveu um grupo de especialistas em diferentes áreas do conhecimento, tais como clínica médica, farmacoepidemiologia, farmacologia geriátrica, entre outros, os quais utilizaram a técnica Delphi. Essa técnica é usada para se obter consenso a respeito de um tema sob investigação. Em geral, os critérios são apresentados aos participantes por meio de inquérito postal. As respostas aos itens são analisadas e um novo questionário é elaborado, acrescentando-se ou retirando-se itens. Os inquéritos são repetidos até a obtenção de consenso entre os participantes (Graham et al., 2003). Por meio desta técnica, estes profissionais definiram, de maneira consensual, uma lista de 19 medicamentos inadequados e 11 medicamentos cuja dose, freqüência de uso ou duração do tratamento eram inadequadas (Beers et al., 1991). Esse critério contempla dois aspectos do uso inadequado de medicamentos por idosos: 1) medicamentos ou classes de medicamentos que devem ser evitados exceto sob raras circunstâncias e 2) medicamentos cujas doses, freqüências de uso ou duração do tratamento não devem ser excedidas (Beers et al., 1991). A lista inclui sedativos e hipnóticos, analgésicos, antipsicóticos, antidepressivos, anti-hipertensivos, antiinflamatórios não-esteróides e hipoglicemiantes orais.

Os critérios utilizados nesta época possuíam a vantagem de simplificação de uso, uma vez que para sua aplicação são necessárias somente as informações sobre uso de medicamentos disponíveis nas bases de dados. Tendo em vista que estes critérios foram primariamente direcionados para idosos institucionalizados, que em geral apresentam piores condições de saúde do que aqueles residentes na comunidade, os autores ressaltaram a necessidade de modificação da lista nos casos em que esta fosse utilizada para estudos envolvendo estes últimos. Além disso, salientaram a importância de atualização da lista, diante das constantes alterações no mercado farmacêutico e da ampliação do conhecimento sobre os fármacos em uso. Salientaram, ainda, a necessidade de expansão dos critérios a fim de que incluíssem variáveis não farmacológicas, tais como diagnósticos, gravidade das doenças, entre outros.

Assim, em 1997, Beers atualizou os critérios publicados em 1991 para incluir novos fármacos e incorporar novas evidências da terapia farmacológica. Além disso, o critério foi ampliado para aplicação em idosos não institucionalizados e incluiu itens adicionais sobre o uso de determinados medicamentos em pacientes com condições patológicas específicas. Esta estratégia resultou numa lista constituída por 28 medicamentos ou classes de medicamentos inadequados e 35 medicamentos ou classes de medicamentos considerados inadequados em 15 condições patológicas específicas (Beers, 1997).

A terceira e mais recente revisão dos critérios de Beers ocorreu no ano de 2002 (Fick et al., 2003). Algumas diferenças no processo dessa atualização são bastante interessantes como, por exemplo, o fato de que, para a seleção dos fármacos que iriam compor o questionário a ser respondido pelos especialistas, foi utilizada a revisão sistemática. Após esta revisão, foi conduzido um inquérito dividido em cinco etapas. Finalmente, foram identificados, por consenso, 48 medicamentos ou classes de medicamentos inadequados e uma lista de medicamentos inadequados em indivíduos com 20 condições patológicas específicas (Fick et al., 2003).

Um outro método baseado em consenso foi desenvolvido por McLeod et al. (1997) no Canadá. Por meio de um painel composto por 32 especialistas, foram identificadas 38 práticas inadequadas de prescrição para idosos. Diferentemente do critério de Beers et al., estes autores categorizaram as práticas em três tipos: 1) prescrição de fármacos geralmente contra-indicados para idosos em função do balanço risco-benefício ser inaceitável; 2) prescrição de fármacos que podem interagir com outros fármacos; 3) prescrição de fármacos que podem interagir com alguma doença. Vale a pena ressaltar que a definição da primeira categoria baseou-se na lista desenvolvida por Beers et al. (1991). Os fármacos inadequados foram agrupados em quatro categorias: cardiovasculares, psicotrópicos, antiinflamatórios não-esteróides e outros analgésicos e fármacos diversos. No entanto, as vantagens e desvantagens desse critério são semelhantes àquelas do critério de Beers.

O terceiro método que utilizou critérios explícitos é o DUR (Drug Utilization Review), desenvolvido por Knapp em 1989, nos Estados Unidos, e que pode ser usado para avaliar a qualidade e o custo do uso de medicamentos (Knapp, 1991). Geralmente, utilizam-se dados retrospectivos de grandes bancos de dados de prescrições médicas para a identificação de problemas relacionados à dose, duração do tratamento, duplicação terapêutica e interações medicamentosas (Hanlon et al., 2002). Knapp (1991) desenvolveu critérios explícitos, baseando-se na literatura científica e no método de consenso para alguns grupos de medicamentos freqüentemente usados por idosos e com implicações significativas decorrentes de seu uso indevido, como antagonistas dos receptores H2 de histamina, digoxina, inibidores da enzima conversora de angiotensina, antagonistas dos canais de cálcio, benzodiazepínicos, antiinflamatórios não-esteróides, antipsicóticos e antidepressivos. Segundo esse método, por exemplo, o uso prolongado de benzodiazepínicos e o uso daqueles de longa ação é inapropriado para idosos.

A utilização de critérios explícitos é bastante útil para avaliar o padrão de prescrição ou de uso de medicamentos por idosos e subsidiar intervenções para otimizar a atenção a esse grupo de indivíduos (Beers et al., 1991). No entanto, algumas limitações devem ser apontadas. Sob circunstâncias específicas, baseadas na avaliação individual, o uso do medicamento considerado inadequado pode ser justificado (Beers et al., 1991). Dessa forma, não representam contra-indicação absoluta, mas sinalizam que raramente esses medicamentos devem ser utilizados. Outro ponto importante a ser considerado é que os instrumentos desenvolvidos a partir deste método não abrangem todos os aspectos relacionados à inadequação, como a subutilização de medicamentos necessários e a administração inadequada (Fick et al., 2003). Além disso, na maioria das vezes estes métodos se restringem à avaliação de fármacos ou grupos de fármacos específicos.

Uma grande vantagem da utilização dos métodos explícitos é a identificação de grupos vulneráveis à ocorrência de problemas relacionados a medicamentos para que sua prevenção seja possível. Os critérios representam, assim, mecanismos para alertar os profissionais de saúde sobre a possibilidade de ocorrência de uso inadequado de medicamentos (Beers, 1997). Além disso, a utilização de listas possibilita a comparação de estudos que avaliaram a adequação do uso de medicamentos realizados em diversos países.

Métodos explícitos e implícitos

Diante das limitações dos métodos explícitos e implícitos, alguns estudiosos, isoladamente, desenvolveram instrumentos que combinam critérios explícitos e implícitos, com a finalidade de contemplar, de forma mais abrangente, o esquema terapêutico, a condição clínica geral, bem como circunstâncias especiais do indivíduo, durante o processo avaliativo. Dentre os instrumentos que possuem estas características, os mais importantes na literatura consultada são aquele desenvolvido por Lipton et al. (1993) e o MAI (Medication Appropriateness Index), criado por Hanlon et al. (1992).

Método de Lipton

O desenvolvimento deste instrumento caracterizou uma etapa de um ensaio clínico realizado nos Estados Unidos, em 1989, com o objetivo de avaliar o impacto da participação de farmacêuticos clínicos no processo da prescrição médica para 236 pacientes hospitalizados com mais de 60 anos (Lipton et al., 1993).
O conteúdo do instrumento foi estabelecido por meio da realização de um painel formado por cinco clínicos e dois farmacêuticos clínicos. Foram definidas seis categorias de problemas de prescrição. Além disso, foi criado um sistema de escores variando de 0 a 2, para classificação da magnitude do problema de cada categoria (Quadro 1). A partir dos escores parciais, foi calculado um escore global de inadequação da prescrição para cada paciente.



Para o processo de avaliação da farmacoterapia, os participantes do painel utilizaram os registros médicos, fontes de informação sobre interações medicamentosas e informações sobre outros fármacos em uso pelos pacientes (obtidas por meio de entrevistas telefônicas). Para cada caso (paciente), a avaliação foi realizada por um par de membros do painel, de forma duplo-cega.
Foi realizado teste de confiabilidade do instrumento, a partir do número de escores discrepantes, durante os seis primeiros meses das revisões. Observou-se que a discrepância diminuiu substancialmente ao longo do tempo. A análise da validade externa do instrumento não foi possível em função da inexistência de um padrão-ouro de comparação. Entretanto, foi realizada uma análise indireta buscando-se uma relação entre os escores médios de prescrição e o relato de reações adversas pelos pacientes e, ainda, o número de admissões hospitalares relacionadas com o uso de medicamentos. Os autores evidenciaram um percentual discretamente superior (7,0%) de hospitalizações entre aqueles pacientes com pelo menos um problema potencialmente fatal (n = 52) comparado ao percentual de 4% de hospitalização para os demais (n = 184). Observou-se ainda uma correlação positiva entre o escore global de inadequação e o número de reações adversas relatadas (Lipton et al., 1993).

O método de Lipton apresenta algumas vantagens, como a existência de critérios explícitos combinados com o julgamento implícito do avaliador. Outra vantagem é o fato de que o instrumento não é fármaco-específico, como ocorre com o DUR. Ao contrário, ele permite uma avaliação do fármaco no contexto da condição clínica de cada indivíduo. Entretanto, algumas desvantagens também devem ser apontadas. Uma vez que cada fármaco é avaliado individualmente, a aplicação do instrumento pode ser demorada. Outro aspecto destacado pelos autores como desvantagem do instrumento é a estreita faixa dos escores. O aumento da amplitude da faixa permitiria maior sensibilidade do instrumento à gravidade dos problemas de prescrição avaliados (Lipton et al., 1993). Por fim, são necessárias novas análises de confiabilidade e validade do instrumento para melhor avaliação deste aspecto e expansão da aplicação deste instrumento (Shelton et al., 2000).
 Medication Appropriateness Index (MAI)

O MAI é um instrumento bastante semelhante ao desenvolvido por Lipton et al. e também foi elaborado como parte de um ensaio clínico para avaliação de serviços em saúde nos Estados Unidos, desenvolvido por Hanlon e colaboradores no início da década de 1990 (Hanlon et al., 1992). Diferentemente do método desenvolvido por Lipton e colaboradores, este instrumento é mais abrangente e já foi submetido a diversos testes de confiabilidade e validade (Hanlon et al., 1992; Samsa et al., 1994; Fitzgerald et al., 1997).
O instrumento foi elaborado por um geriatra e um farmacêutico clínico e consta da avaliação de 10 elementos da prescrição medicamentosa. Para cada elemento foram estabelecidas definições operacionais e instruções para a avaliação. O índice foi desenvolvido a partir de uma escala de três pontos, em que os índices 1, 2 e 3 representam, respectivamente, "uso adequado", "uso marginalmente adequado" e "uso inadequado" (Quadro 2).



Outra etapa no desenvolvimento do MAI foi a definição e validação de um processo de ponderação no qual cada uma das dez categorias foi pontuada a fim de se obter um escore global por medicamento. A pontuação variava de 1 a 5, de forma que um escore igual a 1 para aquela categoria significava ausência de importância, ao passo que um escore de 5 atribuía grande importância para a categoria. Para isso, dois farmacêuticos clínicos avaliaram, individualmente, um total de 105 fármacos prescritos para dez idosos hospitalizados numa clínica de medicina interna nos Estados Unidos. Nesta avaliação o escore global apresentou uma confiabilidade aceitável (coeficiente de correlação intraclasse igual a 0,74). Esse procedimento aponta para a validade de conteúdo do instrumento (Samsa et al.,1994).
O instrumento foi ainda submetido à análise de confiabilidade, sendo os coeficientes Kappa obtidos (variação de 0,54 a 0,92) considerados satisfatórios para que o seu uso seja recomendado em populações de idosos não hospitalizados (Hanlon et al. 1992; Fitzgerald et al., 1997).

De forma semelhante ao método de Lipton, o método MAI não teve sua validade externa atestada, devido à ausência de um padrão de comparação. Por outro lado, foi avaliada a relação entre o escore global de cada fármaco e a utilização de serviços por idosos. Observou-se que a média do escore era superior (ou seja, uso mais inadequado) para aqueles indivíduos com maior número de hospitalizações (Schmader et al., 1997).

É interessante ressaltar que ambos os métodos, de Lipton e o MAI, não avaliam reações adversas a medicamentos (RAM) de uma maneira global. No MAI, somente as interações medicamentosas são contempladas e no método de Lipton, além de interações, a hipersensibilidade é considerada no processo de avaliação. No que se refere ao MAI, os autores atribuem a ausência desse critério no instrumento à complexidade que envolve a determinação da causalidade de uma RAM, bem como à existência de algoritmos próprios para essa finalidade (Hanlon et al., 1992).

Na atualidade, é possível que o MAI seja o instrumento mais completo, válido e reprodutível disponível para avaliar a adequação da terapia farmacológica em idosos. Sua principal desvantagem é o tempo requerido para completar a revisão de cada medicamento, o que é estimado em 10 minutos. Por outro lado, se utilizado de acordo com as definições operacionais, torna-se uma ferramenta estruturada e sistemática de revisão, ao mesmo tempo em que confere uma flexibilidade relacionada à particularidades de cada indivíduo em uso de medicamento.

Os idosos são o grupo etário que cresce mais rapidamente no Brasil. A demanda deste grupo por recursos de saúde é intensa, tanto no que se refere à utilização de serviços de saúde quanto no que diz respeito ao uso de medicamentos.

Entretanto, no campo da farmacoterapia, o cenário que se vislumbra é do dilema "acesso ou excesso". Este dilema é representado pela dificuldade na obtenção de medicamentos, pela subutilização de classes terapêuticas específicas, pelo consumo irracional de novidades químicas (Rozenfeld, 2003), enfim, por distorções nos diferentes elementos que compõem a cadeia medicamentosa. A coexistência dessas distorções propicia, indubitavelmente, o uso inadequado de medicamentos por idosos brasileiros. Esta situação carece de iniciativas e mesmo de uma discussão mais aprofundada para seu adequado enfrentamento.

Nesse contexto, tão importante quanto o conhecimento dos diferentes métodos utilizados para avaliar a adequação da farmacoterapia em idosos é se vislumbrar o potencial de uso dessas ferramentas diante das particularidades dos serviços de saúde no Brasil.

A partir da revisão apresentada, é possível observar que a grande maioria dos métodos é aplicada utilizando-se informações sobre o uso de medicamentos obtidas em prescrições médicas, bases de dados de farmácias e/ou registros médicos. É perceptível que a qualidade dessas fontes é fundamental para que o uso desses instrumentos produza resultados compatíveis com a realidade e, em especial, úteis como alvos de estratégias de intervenção. Esta condição é um primeiro desafio para a transposição destes métodos para o Brasil. Aqui, fontes como os bancos de dados dos programas de atenção à saúde ou das contas hospitalares, em geral não dispõem de registros sobre o uso de medicamentos. Eventualmente, os programas de assistência farmacêutica em sistemas locais de saúde possuem informações sobre a distribuição de fármacos, mas é incomum encontrar as variáveis representativas do uso de medicamentos associadas às variáveis de morbidade ou socioeconômicas, de forma que se possam avaliar, sistematicamente e em profundidade, os diferentes aspectos do processo de utilização dos mesmos. Além disso, o preenchimento dos prontuários médicos em diferentes níveis de atenção à saúde é de qualidade bastante insatisfatória, em especial no que tange às informações relacionadas aos medicamentos prescritos. A adoção de estratégias focadas na qualidade das informações sobre o uso de medicamentos nas diversas fontes mencionadas é de grande valia para a implementação de programas de avaliação da farmacoterapia para pessoas com 60 anos ou mais.

Num segundo momento, ao se considerar a possibilidade da utilização de listas de medicamentos classificados como inadequados, é fundamental ressaltar a necessidade de adaptação destas listas à realidade do mercado farmacêutico brasileiro. Isso porque alguns fármacos comercializados nos países onde as listas foram desenvolvidas não o são aqui e algumas especialidades utilizadas aqui não o são lá. Neste caso, o mais coerente é que sejam elaboradas listas próprias, ou seja, que traduzam a realidade brasileira. Estas listas, obtidas por consenso, poderiam ser úteis às atividades de seleção de medicamentos, bem como poderiam subsidiar a elaboração de protocolos terapêuticos que contemplem as particularidades dos indivíduos com mais de 60 anos. Os centros colaboradores de Geriatria e Gerontologia do país, as universidades abertas da terceira idade, juntamente às comissões de padronização de medicamentos e aos órgãos reguladores, ressaltado o seu caráter multidisciplinar, podem exercer um importante papel neste processo, dando suporte ou mesmo desencadeando ações neste sentido.

Outro aspecto de importância no que se refere à utilização dos métodos apresentados para avaliar a adequação da farmacoterapia em idosos no Brasil é a evidência de um espaço que requer a atuação do farmacêutico. Em geral, todos os métodos discutidos aqui foram elaborados e/ou conduzidos com a participação do farmacêutico. Além disso, é interessante observar que os instrumentos utilizados pelos métodos implícitos e por aqueles que conjugam critérios explícitos e implícitos se aproximam muito da prática da Atenção Farmacêutica. Esta, por sua vez, tem como um dos seus objetivos, garantir que os medicamentos utilizados sejam indicados, efetivos, seguros e convenientes, maximizando os benefícios e minimizando os riscos decorrentes de seu uso (Cipolle et al., 1998).
 Considerações finais

Discutir a qualidade da farmacoterapia em idosos é discutir a atenção à sua saúde, tendo em vista que o medicamento ainda é um importante instrumento de recuperação e manutenção da saúde de indivíduos deste grupo populacional, embora resguardada a preocupação com a não medicalização do conceito de saúde. Assim, a avaliação da farmacoterapia em idosos é um importante instrumento de avaliação da qualidade da atenção prestada a este grupo. Esforços para aprimorar a seleção, prescrição, a dispensação e a utilização de fármacos devem constituir prioridade nos programas de atenção ao idoso.

O presente artigo apresentou diferentes métodos utilizados para a avaliação da qualidade do uso de medicamentos em idosos, com o intuito de subsidiar a discussão em torno da Farmacoepidemiologia do envelhecimento no país. Embora se trate de um artigo de revisão, diante da complexidade que permeia os processos de "qualidade", "uso de medicamentos" e "envelhecimento populacional", é importante ressaltar que os métodos apresentados não pretendem esgotar as possibilidades de avaliação e intervenção nesta temática. Não obstante, a adequação ou adaptação destes métodos à realidade brasileira e a incorporação dos mesmos às práticas avaliativas em saúde pode se constituir em um passo fundamental na promoção do uso racional de medicamentos no país.

Colaboradores
AQ Ribeiro e CMCA realizaram a busca na base de dados, a seleção e análise dos documentos e a redação do artigo. FA Acurcio, SMS Magalhães e F Chaimowicz participaram da análise dos documentos. Todos os autores tomaram parte na elaboração do artigo final.

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 Artigo apresentado em 26/11/2004
Aprovado em 18/04/2005
Versão final apresentada em 18/04/2005


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